Pequeno conto chamado "Cenário".

Cenário

Hoje à noite, depois de tanto tempo, vindo aqui, sinto-me diferente. As lembranças surgem como um trem, atravessando minha cabeça. E isso dói, dói impetuosamente. Elas são como cães caçando, buscando algo que é necessário buscar. É algo que está em meus pensamentos, e eu o farejo com minhas lembranças. O mato está mais rude. As árvores, poucas que ainda restam, parecem se esconder nelas mesmas, com sua velhice e fragilidade. Não há mais aves noturnas, não há mais aquela vida animal, que antes, posso dizer, completava o cenário como se fosse parte fixa dele. Mas o lago continua cristalino como antes. Eu toco sua água fria, me aquecendo um pouco. O trem está a todo vapor. Tiro a roupa, adentrando-me em águas memoráveis, sentindo a vida ser mais viva, cada vez mais. Olho para cima com um sorriso quase surgindo em meu rosto. Há muitas nuvens, o céu está coberto assim como a minha memória. Dou um mergulho a cada minuto e debaixo d'água me sinto parte do cenário. Levanto nu do lago, sento sobre minhas roupas e suspiro. Aqui, como estou, ainda me sinto parte do cenário. Ainda há muita noite a ser percorrida pelo tempo neste dia e isso me conforta, assim como as roupas na grama seca, sobre as quais agora deito. Brinco com minhas mãos tentando fazer com que as nuvens se desfaçam da lua e, silenciosamente, elas se desfazem. Aquela luz lunar é como um colírio, respingando em meus olhos e dando vida aos mesmos. Tenho arrepios - sobre o meu ser, em momento mais íntimo com a natureza, flutua a lua, trazendo consigo o azul noturno mais belo que já pude ver - . Nada é cinza, nem mesmo as finas nuvens que agora dão espaço à uma grandiosidade. Os cães são astutos. E como um cão, instintivamente olho para uma rocha próximo à macieira que, aos meus olhos, brilham mais do que qualquer outra árvore tímida sob a imensidão do luar. Ainda há maçãs florescendo, largando um cheiro ao redor que me faz suspirar e ir de encontro ao chão, com minhas mãos perfurando a terra. Enterrada com cuidados irresponsáveis encontro uma caixa antiga, dentro da qual há uma foto que se compõe em três pessoas debaixo de uma macieira, a mesma de onde estou. Olho para aqueles rostos cheios de expressão, com sorrisos de fácil carisma e afeto. Me recordo de tudo e de todos. Meu coração bate suavemente, como se descansasse em leito do próprio lar. Aqui começo a me sentir seguro, em paz e tudo à minha volta parece me tomar. Sou, pois, parte do cenário.

Epa Filho
Enviado por Epa Filho em 14/06/2007
Código do texto: T527331