O Dia do Juízo


Primeiramente foi um menino quem viu. Segundamente o povo.
Dos altos azuis do céu desceram dois anjos, um índio e um negro, carregando um enorme telão de LED
O povo de igreja começou a se valer de tudo que era santo. Os macumbeiros correram a fazer ofertas para os seus orixás. As Testemunhas de Jeová continuaram com a pregação que aquela arrumação não estava escrita na Bíblia, portanto, só podia ser marmota de Satanás.

Os dois anjos pousaram, cada qual em uma nuvem. O povo de olho grelado, idosos literalmente morrendo de medo, os doidos e as crianças embevecidos. Até os cachorros estavam prestando atenção.

Quando começou a transmissão todo mundo deu risada. Eram as pequenas peripécias de uns e de outros, o Padre se beijando com uma moça na casa paroquial, o leiteiro entrado quando o carpinteiro saía, as calcinhas furadas das mulheres. Aplaudiram, pediram mais. Os anjos se entreolharam.

O segundo vídeo mostrava policiais em conluio com traficantes, políticos aparentemente rivais dividindo o dinheiro do povo, juízes recebendo propina por habeas corpus de marginal, pastores rindo alto da ingenuidade dos fiéis.
Desse vídeo ninguém gostou. Mostrassem outro, por favor.

Os anjos mudaram o canal. Aí o bicho pegou. Homens e mulheres se traindo com conhecidos, vizinhos, parentes, defuntos e bichos. As mães tamparam os olhos das crianças e correram para dentro de casa. Os doidos só reconhecendo as pessoas "olha, é fulano! Ei, seu Zé! É o senhor, né não?"
As mulheres que não tinham filhos olhavam furiosas para os maridos. As raparigas não tinham onde meter a cara. Fez-se um silêncio pesado.

O primeiro a puxar a faca foi o padeiro, cuja filha morrera recentemente e o coveiro vilipendiara seu corpo de moça. Enterrou a arma no bucho do outro até o cabo.
O filho mais velho do coveiro, cuja noiva andava seca atrás dele com um pedaço de pau para quebrar em sua cabeça devido às sem-vergonhices dele com sua melhor amiga, matou o padeiro estrangulado. A noiva chegou e deu um golpe fatal em sua cabeça e a melhor amiga dela, que o amava e fazia despachos para o noivado terminar, enterrou-lhe a tesoura nas costas.
E foram se matando uns aos outros, corpos caindo, sangue espirrando,a histeria coletiva de matar tomada pelo puro instinto primitivo. A moça que estava se beijando com o padre matou-o com uma pedra de calçamento depois de vê-lo beijar mais dez outras e depois se matou. Ela foi o último corpo a tombar.

Quando a estrela d'alva despontou, os que sobreviveram, as mães, as crianças e os doidos, dormiam profundamente. Uma legião de anjos tinha descido para levar os corpos e uma chuva medonha lavara a terra, chuva milagrosa que limpou os rios, avolumou as nascentes e fez a Terra dar o melhor de si. Bichos corriam soltos, cachorros brincando com gatos que davam pulinhos com ratos às costas.

O telão de LED continuava lá. Quando receberam ordens para subir, o anjo negro falou ao anjo índio:
"Tu viu? Careceu Dele fazer nada não. Eles se destruíram por si mesmos."

E o anjo índio, balançando a cabeça:
"Mim viu."
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 14/07/2015
Código do texto: T5310625
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