A Moça Loura
 
Vou lhes dizer uma coisa: ô bicho estranho é mulher.
Homem, quando desconfia que a mulher é perigosa, corre pra longe sem olhar pra trás. Mulher é o contrário; corre pra cima.
Temos o exemplo mais famoso do Sertão, a Maria Bonita que deixou o marido pacato pela Fera do Cangaço.
Temos notícias de psicopatas, assassinos em série que recebem, na cadeia, inúmeras cartas de mulheres apaixonadas, desejosas de com eles se casarem.

Apois. Naquela festa em que o Tio Manoel pepinou o bêbo de faca, a moça loura Se apaixonou por ele. Perdidamente. Amou sua valentia, seu porte garboso, sua elegância natural ao montar no cavalo e sair de cena. E começou a sonhar.
Sonhar, minha gente, é coisa perigosa. Quando cria raízes, ou nasce ou mata de desgosto o sonhador. Tem também a terceira (e pior) opção, brotar e crescer pra dentro, criando uma realidade paralela que fatalmente termina por levar o sonhador à insanidade.
A moça loura queria o tio Manoel. Queria como nunca antes quisera algo na vida. Sonhava com ele. Dormia e acordava pensando nele.
Após a morte da mãe, ficara retraída, lacônica, quase não se alimentava. Os grandes olhos verdes destacavam-se no rosto emagrecido, os cabelos louros já não tinham brilho porém, depois que viu o tio, deu-se uma transformação extraordinária.
Se viva a mãe estivesse, teria percebido aquele desabrochar. O corpo de menina-moça ganhou formas, o cabelo avolumou-se e brilhava de meter inveja ao próprio Sol. As faces ganharam cor e a boca, vermelha e úmida, desenhava beijos que seriam do tio Manoel e disso ela tinha certeza porque o seu coração, depois de conhecer o amor, tornara-se selvagem, imperioso e belo como o Sertão que a vira nascer.
Mulheres, quando queremos, descobrimos a ficha completa dos nossos afetos sem levantar suspeita. A moça loura descobriu o nome do tio, idade, onde morava e o melhor, era solteiro. Descobriu e começou a tecer a teia do próprio destino.
Enquanto o pai e os irmãos trabalhavam no roçado ela esmerava-se no cuidado da casa, inventando pratos novos, fazendo pequenos reparos nas roupas dos irmãos. E bordava um vestido de noiva, de noite, trancada em seu quarto. Pela madrugada escondia tudo no baú antigo, apagava a lamparina e deitava-se na rede, imaginando o cheiro do tio Manoel.
A casa da moça loura ficava a umas boas léguas da casa do meu avô, onde o tio apeava de quando em vez .
Quando terminou de bordar o vestido ela fez uma trouxa com mais umas roupinhas, escondeu e aguardou.
Certa manhã, um casal de idosos bateu palmas do terreiro, pedindo um copo d'água. A moça fê-los entrar e sentar-se, ofereceu tapioca com café, no que os velhos aceitaram de bom grado. Coincidentemente eram parentes da minha avó, iam lá passar a semana santa.
A moça loura sorriu. O seu dia tinha chegado. Quando o casal saiu ela pegou a trouxa, encostou a porta de cima e chinelou atrás. Enquanto os velhos iam pela estrada ela os seguia furtivamente, por dentro dos matos, como uma onça.
Quando chegou no terreiro da casa dos meus avós ela esperou até ver uma mulher sair com uma cuia de milho. Era a Vó, que assombrou-se com a aparição daquela menina no seu terreiro. Conversaram e quanto mais ela falava mais a Vó não acreditava no que estava a ouvir.
Escondeu a moça loura na cozinha e foi falar com o Vô. Também ele custou a acreditar, mesmo ouvindo-a falar por si mesma. "O Manoel, meu irmão? Mas ele..." A Vó disse não com os olhos. Explicou à moça que o tio era um homem arredio, trabalhava no matadouro, morava sozinho porque gostava. Não contou a história do pinto, obviamente.
E a moça decidida a se casar com o ele. Não importava o tempo nem qualquer coisa que fosse. Queria ser sua mulher.
O Vô, vendo a resolução escrita nos olhos verdes dela, disse enfim que iria atrás da sua família que aliás devia de tar muito preocupada com o sumiço dela. Conhecia o seu pai , ia avisar que a menina encontrava-se em casa de gente honrada.
No mesmo dia os cavalos riscaram no terreiro, eram o pai e os irmãos a buscá-la. Negou-se a ir com eles. Correu para a cozinha, pegou uma faca e encostou no pescoço. Se um deles se aproximasse ela se mataria.
Nesse caso extremo o pai cedeu. Pois que ficasse mas, conhecendo o tio Manoel como ele conhecia, ia morrer vitalina. E não tivesse nunca a atrevessença de voltar pra casa.
Isso foi na sexta-feira santa. No sábado de manhã o tio estaria voltando da matança dos bois do sábado de aleluia e certamente tomaria um café com o Vô.
Dormiu inquieta, no dia seguinte vestiu-se de verde e ficou no alpendre esperando.
Pelas sete horas o tio apeou. A moça loura olhou com delírio o seu rosto bonito, os olhos cinzentos, o cabelo preto. Seu coração parecia que ia sair correndo. Com as faces pegando fogo, levantou-se em todo o seu esplendor feminino.

O tio passou por ela como se fosse uma parede. Foi prosear com o Vô. Mas ela não desistiu. Pediu ajuda à Vó então, toda vez que o tio passava por lá, tinha um doce diferente, um beiju, uma tapioca com queijo. Ela quem o servia. E nada.
Um dia a Vó resolveu chamar o tio Manoel pras conversa. Que ele era homem só, precisava de uma mulherzinha que cuidasse de suas coisas, que lhe fizesse mezinhas quando estivesse doente e fosse cozinheira de mão cheia. E falou a verdade. Contou tudo a ele, a fuga da moça, a conversa no terreiro, a faca no pescoço. Tudo por ele. Porque ela estava decidida a se casar com ele ou morrer solteira.
O tio Manoel escutou em silêncio. Na verdade o seu pensar estava na hora que cortou o pescoço do boi e o sangue espirrou, quente, cobrindo de vermelho suas mãos. Disse nada não.
O tempo foi passando e passando até que o tio Manoel enfim cedeu. Ia se casar com a moça. Podiam chamar o padre.
A cerimônia se deu na capela da fazenda de um amigo do Vô. A moça loura disse sim ao tio Manoel e ele colocou uma aliança em seu dedo. Depois montou no cavalo, ela subiu na garupa e partiram, pela estrada deserta, rumo ao desconhecido.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 14/07/2015
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