A Morte do Guarda
 
Sentado no tamborete o guarda dormitava. De vez em quando virava a bunda de lado e dava um peidinho. A tarde demorava demais a passar, estava doido para ir para casa, comer um baiãozinho de dois e descansar na rede. "Merda de tempo que não passa", pensava.
Miúdo, dar cor de barro cru, cara de cachorro que rouba fato, o guarda era feio de dar nó em pingo d'água mas se achava o danadão da represa. Talvez a valentia emanasse das arnas dos cangaceiros que estavam ali, relembrando os bon tempos, chorando para matar um.

Há anos trabalhava naquele museu. "Merda maior do mundo é museu", pensava ele. Uma ruma de velharias expostas à visitação de um povo de merda que sequer olhava para a sua cara.
 
Naquela tarde o guarda estava enfezado, doido para descontar sua frustração em alguém. Pelo rabo do olho ele viu uma pretinha de vestido amarelo subir as escadas, encantada com cada detalhe do prédio, com uma câmera na mão.
Para começar, a negrinha lhe deu boa tarde. A raiva aumentou: "Que porra de boa tarde o que, sua nêga do pajeú", pensou com seus botões.
 
A negrinha era particularmente odienta. Conversava com as relíquias como se as conhecesse de longa data. Exclamava de prazer ao ver algum retrato de pessoa dos seus afetos. E tirava muitas, muitas fotos.
Foi o pezinho que o guarda encontrou para embostar:

"Olhe, não pode tirar foto com flash, são normas da casa."

A menina respondeu com um sorriso que a máquina estava sem flash. Quis inclusive mostrar-lhe como era uma foto com flash mas ele deu-lhe as costas desdenhosamente e saiu bodejando.
A menina, parada, não acreditava na existência de semelhante figura. Nisso escutou o punhal de Virgulino Ferreira, preso dentro de uma vidraça, com um suspiro de saudade, implorar que ela o cravasse no espinhaço do guarda. Estava doido para sentir de novo o gostinho bom de sangue.
Ela sorriu para o punhal, repreendeu-o com um olhar divertido e passou para a ala dos escritores, sempre com a câmera na mão..
 
Havia muita gente naquela tarde a visitar o museu, casais com filhos, estudantes, estrangeiros. Mas a menina de amarelo tinha virado a presa do guarda. Seguia-a contumaz, entifando direto. Se quisesse até teria aprendido um pouco de história porque a garota conhecia tudo e falava sozinha em voz alta.

Depois de apreciar bastante as relíquias a menina virou-se para ele: "Ainda há espaços por visitar?"
E ele respondeu fazendo cara de cu:"Que que você acha? Já rodou duas vezes!"
"Sei lá", disse a menina, "o museu é tão grande..."
 
E desceu as escadas, deixando-o frustrado por não lhe ter dado o gosto de um bate-boca básico. Apreciou novamente a bela escadaria e saiu, alegre como um canário.
 
No piso superior o guarda continuava entediado. Faltava ainda uma hora para o museu fechar. "Que merda", pensou.
De repente sentiu aquela pontada no intestino: era uma fininha. Lembrou-se com arrependimento da panelada que comera no almoço.
E lai vem, lai vem, a caganeira descendo com tudo e cadê banheiro para cagar. Se saísse do seu posto era capaz do povo roubar alguma peça. Ficou lá, em pé, suando frio, como se fosse da Guarda Real do Palácio de Bukcingham.
 
No ente, o guarda do térreo, vendo-o naquela posição, quis dar-lhe um susto. Aproximou-se por trás sorrateiramente e cravou-lhe os dois indicadores na titela, dando uma gostosa risada.
 
Oh, rapaz. Pra que. Foi uma explosão de merda, as relíquias do museu deram graças a Deus pelas vidraças que as protegiam. As balas das carabinas estouraram de rir. Os punhais dos cangaceiros deram vivas. Era muita mas muita bosta. O colega ficou todo respingado.

E o guarda cagou, cagou, bosta, pensamentos, frustrações, a raiva do salário pouco, lembranças, até sumir e restarem apenas o chapéu, a farda e as botas dentro de um poço de merda, para ódio da faxineira que já tinha se trocado para ir embora e precisou vestir novamente o uniforme e limpar toda aquela sujeira.
À sua alma não foi permitido sequer limpar a bunda; desceu direto, de cu cagado, caindo dentro de uma enorme piscina de merda alheia e desonerada aonde outras almas que em vida destrataram pessoas sem motivo estavam imersas até o pescoço, vez em quando sendo obrigadas pelos capetas a darem um mergulho profundo, sob pena de dolorosas garfadas.

 
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 18/07/2015
Reeditado em 23/07/2015
Código do texto: T5315533
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