O quadro em preto e branco

Preparo-me para pintar uma obra de arte. A missão: retratar a humanidade em uma só tela! Sei que será um retrato cruel, por isso separo a tinta preta e começo a fazer minha obra.

No canto inferior direito, desenho o marido espancando a sua mulher. Ele com um olhar impiedoso e cruel, com satisfação em açoitá-la, sem um pingo de remoço daquela atitude covarde. Como se cada sofrimento que ele tivera em sua vida tivesse que ser descontado na pobre mulher. Ele vai com agressividade, com socos e pontapés e parece gritar, talvez palavras tão baixas quanto sua agressividade. A mulher está de joelhos, curvada aos pés do agressor. Ela é retratada com um olhar de submissão. Esboça uma reação às agressões, no entanto reações leves que revelam que aquela não é a primeira vez que ela passa por tamanha injustiça. Suas roupas estão rasgadas e os pés descalços. Alguns objetos, como espelhos e vidros estão quebrados, dando um tom ainda mais dramático àquela cena. Há um líquido no chão, não se pode definir se é sangue ou alguma bebida, pois a pintura é em preto e branco.

No canto superior direito, desenho uma garota, a menoridade da garota é questionável, pois seu rosto parece de uma menina, apesar do corpo de mulher. Ela está se prostituindo. Debruçada na janela de um carro, provavelmente dando seu valor. Ela usa um vestido, bastante provocativo. Um salto bem extravagante e alto. Um corpo muito belo que se exibe pela transparência do vidro do carro. Enquanto o homem, dentro de seu novo carro popular, negocia o serviço para saciar suas vontades. Não dá para ver seu rosto, apenas seu braço peludo, que está para fora da janela, como se quisesse mostrar-se dominante, pois ele é quem tem o dinheiro, e a qualquer momento ele pode aceitar ou rejeitar os serviços da garota. Nos lábios da garota existe um chamativo batom, não se pode definir a cor do batom, pois a pintura é em preto e branco.

No canto inferior esquerdo, desenho um mendigo. Ele está sentado em uma calçada movimentada, com um cobertor. Ele está com vestes rasgadas, com um pequeno pote em suas mãos sujas, mãos estendidas para o alto, pedindo moedas, enquanto um homem passa, ignorando o pedido de esmola do pobre. O homem está de terno e com um passo largo, seu olhar é para frente e focado em seu destino. Talvez a presença de mendigos fosse tão comum naquela cidade, que ele o tratou indiferentemente, como se fosse apenas uma pedra no meio do caminho. O mendigo, vendo que será rejeitado mais uma vez, esboça um olhar de chateação. Esse mendigo estava envolvido com um cobertor listrado, não se pode definir a cor das listras do cobertor, pois a pintura é em preto e branco.

No canto superior esquerdo, desenho muitos adultos, encostados em um muro, fumando crack e partilhando da droga uns com os outros. O muro está todo pichado e as pessoas com aspecto doentio, magras e só conseguem pensar na próxima pedra de crack. Mais ao fundo é perceptível a figura de uma viatura policial e dois agentes de polícia, que parecem não se preocuparem com a situação. Talvez por ela parecer irreversível ou já ter fugido de controle. Uma situação social que parece ter se solidificado com o tempo, como se dissessem que é melhor manter aqueles adultos ali se matando com o crack do que mantê-los dispersos na sociedade, cometendo outros tipos de crimes. Quanto às pichações no muro, não se pode definir a cor do piche, pois a pintura é em preto e branco.

No centro do quadro, desenho um pai, uma mãe e uma filha, a útima aparentando uns 5 anos de idade. O pai e a mãe estão com os olhos abertos, convergindo seus olhares para a filha, já a garotinha está com os olhos fechados, fazendo careta bem-humorada, numa clara descrição que está feliz de estar apertando a mão dos seus pais. O pai tem um brilho no olhar, parece ser a pessoa mais feliz do mundo, parece que se sente bem ao ter aquelas duas mulheres para alegrar sua vida. A mulher, com um sorriso de satisfação com aquele momento, parece não querer saber de nada, só quer proporcionar sorriso a sua filha. A mãe está com um vestido vermelho, a filha está com um vestido rosa e o pai com uma camisa azul claro e calça jeans. Essa imagem eu optei por não a fazer em preto e branco. Optei em deixá-la no centro de tudo e utilizar as cores mais vivas possíveis, com o céu, nuvens e uma família feliz.

Se me perguntarem se fiz um quadro em preto e branco, responderei que não! Um quadro só é preto e branco se ele for todo em preto e branco. A minha tela tinha cor no centro, pouca cor, mas tinha cor.

Enquanto houver amor no mundo, mesmo que pouco, mesmo que na minoria das pessoas, mesmo que ínfimo, o mundo tem COR! E eu prefiro acreditar que a tela jamais será em preto e branco, mas sim que as cores um dia irão para os cantos da minha tela.

Fron Monseus
Enviado por Fron Monseus em 26/07/2015
Reeditado em 26/09/2015
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