A DEVOÇÃO DE NEMÉSIO *

Sobre a tumba, um corpo esquálido, cabelos brancos, rosto vincado pelo tempo...uma vela que se apagou nas mãos enrugadas, justamente com aquele homem, encontrado hirto, gélido já, debruçado rente à cruz ostentada no jazigo. Alguns passantes, naquele dia de visitação de finados, deram-se conta do ocorrido; embora, de longe, não percebessem que estivesse morto, pois não caíra, mantinha-se apoiado, ajoelhado. Sua expressão de olhos estáticos e abertos, como se ainda rendesse homenagem a algum falecido, cujos restos mortais jaziam sob a lápide... Um antigo funcionário da necrópole disse que o via, ano após ano, sempre na mesma data, a dos mortos, visitando aquele túmulo, acendendo velas e depositando flores, compungido, refugiado em si mesmo, a murmurar coisas, possivelmente orasse em intenção do visitado, ou visitada, não sabia. Pelo visto vinha de outro lugar, não sendo conhecido na cidade.

Nemésio infartara cumprindo sua devoção de muitos anos, enterrando consigo o mistério de tanta dedicação. O segredo ia consigo, jamais partilhado. Ocorre que o mesmo, há mais de 25 anos antes, por breve período, foi funcionário daquele cemitério. Durezas de uma época ruim, sem trabalho na lavoura, seca inclemente afastando os retirantes para outras plagas. Aceitou a função de auxiliar de coveiro, indicação de um vereador conhecido dele, era a única alternativa de trabalho naquela circunstância. Agarrou com unhas e dentes a oportunidade, abrir valas ele sabia, por que não covas ?

Mas as circunstâncias, que seriam transitórias, marcou-lhe a existência inteira. Feito ferro em brasa em novilho novo, ardia e o mantinha vinculado ao passado, a atormentá-lo na consciência pesada. Era um homem bom, probo, de recato irrepreensível, porém, no íntimo, sentia-se um renegado, um ladrão covarde a agir sorrateiramente, não importasse as razões a amenizar seu delito...

Sua filha, Inácia, a do meio, pois tinha dois outros, com imenso sacrifício do pai e da mãe, conseguira vencer as barreiras das dificuldades inerentes à vida humilde, e iria ser diplomada professora. A angústia e o desassossego de não ter como acompanhá-la na cerimônia, por não dispor de trajes apropriados, nem ele e nem a esposa, o afligia... Por pouco continha sua revolta, em sua condição paupérrima. Não conseguiu dar diploma aos meninos, eram pés rapados como ele, e como fora seu pai, semi analfabeto, a vida madrasta parecia cerceá-lo, estabelecendo diferenças, entre os bens nascidos e os quase sobreviventes.

Naquela tarde longínqua, inesquecível, início de suas atividades funerárias, um morto ilustre na cidade seria sepultado, ataúde elegante e decorado, terno impecável, sapatos lustrosos, abotoaduras na alva camisa, gravata combinando...Um desperdício a virar cinzas na sepultura.

Forte ainda, na entrada da meia idade, o rosto contraído em suas preocupações, a mente trabalhando febricitante; tanta riqueza a ser enterrada, apenas para a visitação de poucas horas, enquanto o pobre morre em fraldas de camisa, em caixão de terceira, parecendo papelão. Tecia, toscamente, suas teorias subversivas, socialistas, sem nem perceber disso.

Fora encarregado de assentar os tijolos da gaveta, colocar o cimento, após as exéquias de praxe. As coroas de flores decoravam todo o local, enquanto os acompanhantes, feita as orações, começaram a se dispersar...

Havia observado o corpo no velório, no fechar da tampa mortuária, matutando consigo mesmo, pois o defunto tinha o seu tamanho, talvez um pouco mais gordo, ou seria inchaço ? Os sapatos possivelmente lhe serviriam...meu Deus, o que era aquilo ? Sentia vergonha de si mesmo ao imaginar-se apropriando de trajes alheios, principalmente de um defunto. aquela sensação de impotência de não poder ver a filha em data única e especial, porém, funcionava como um peso na balança, fazendo-o ponderar, como se justificando pelos insanos pensamentos. Aquilo tudo se perderia, viraria pó, junto com a putrefação natural da matéria, esta, bem antes.

A possibilidade de realizar seu sonho de acompanhar a filha dava-lhe o sustento para arriscar-se na empreitada, por mais macabro que parecesse aquele gesto. Aquele terno e gravata, a camisa e as abotoaduras, os sapatos lustrosos, sim, a filha sentiria orgulho dele.

Esperou pacientemente a retirada dos últimos acompanhantes; ciente de que estava só, trouxe o caixão para fora da gaveta, abriu a tampa e, cuidadosamente, passou a despir o falecido, cuidando para não sujar as roupas. Em poucos instantes o ilustre estava nu, como veio ao mundo, e como dele se despediria, a despeito de sua vontade. Retirou os sapatos, e também as meias, além de aproveitar igualmente a cueca, ajeitou as flores sobre o féretro para não deixá-lo totalmente exposto. e, respeitosamente, como se desculpasse, persignando-se com um sinal da cruz.

Embora não atinasse com o conceito, os fins justificando os meios, tal era o que ocorria com ele, a motivá-lo na usurpação dos pertences da ilustre figura. Soubessem os parentes e conhecidos, que o homenageado chegaria ao céu, ou ao inferno, nu em pelo, o coveiro seria preso, e isso o incomodava. Aquilo seria o seu segredo, jamais confidenciado com ninguém.

As roupas se ajustaram perfeitamente ao seu novo usuário, e, para conforto de Nemésio, até os sapatos de cromo alemão, lustrosos, coadjuvados nas suaves meias, calçaram bem em seus pés rachados na lida roceira.

Despistou as indagações domésticas, aquilo havia sido presente do edil, o mesmo que lhe recomendou para o emprego de coveiro. Arrumaram uma veste para a esposa, e participou, satisfeito, da formatura da filha, sob olhares curiosos dos presentes à celebração.

O hábito fino foi testemunha, então, de todos os momentos, raros, sim, mas marcantes de sua vida: casamento dos filhos, batizados dos netos, e atividades sociais de que participou como convidado, sempre atraindo olhares admirados. Trazia a veste impecável, só a usando naquelas situações especiais.

Com a velhice, aquilo que parecia superado, foi ganhando contornos nítidos, revividos, o atemorizando, fazendo-o sentir-se infeliz com o que fizera... Embora há muito tivesse deixado aquela cidade, sentia-se na obrigação de visitar o túmulo e prestar as suas homenagens ao doador involuntário das próprias roupas. Achava-se, com as visitas, mais conformado, e assim viajava em finados, sempre solitário, para a peregrinação, como se fosse uma devoção ao extinto benfeitor. Aquilo parecia uma promessa dele com o falecido, uma compensação pelo crime, um atenuante para a sua consciência a incomodá-lo. Não se lembrava da fisionomia do cadáver, evitou encará-lo enquanto o despia, isso não fazia diferença; bastava participar de qualquer velório, o morto parecia o mesmo, o acusando em seu silêncio sepulcral. Imaginava o pobre se apresentando no outro lado da vida, envergonhado, com sua nudez exposta...

Pior que tudo, não raro, assaltado em seus pensamentos, supunha o dia, inevitável a todos, em que o encontraria, ambos defuntos, e ele a cobrá-lo pelas roupas roubadas... Não tinha mais paz, sentia-se indigno.

Dizem que o criminoso sempre volta ao local do crime, verdade ou não, ali se encontrava o Nemésio, morto sobre a lápide que profanou um dia... Se encontrou com o defunto pelado é outra estória.

Texto selecionado para publicação em livro na Antologia A MULHER DE BRANCO, editora CBJE-Rio de Janeiro-RJ, setembro/2015