Noites com Sol
 
Um dia não tem significado para além das vinte e quatro horas na opinião das gentes mas um dia para a filha de Calíope era um universo dos glúons aos cometas, supernovas e poeira estelar.
O longo colar de pérolas era mais que um acessório, algo em que tocar, torcer e apertar para manter o foco no consciente aqui/agora.
Toda uma poética na ponta do cigarro que escapava dos seus dedos longos e rolava para ao pé da calçada.
Os lábios se entreabriam para um beijo que não chegaria nunca no entanto sua imaginação poderosa traçava as linhas da boca dele, do corpo dele junto ao seu, dando-lhe quase a percepção do sabor de sua língua, do cheiro de sua pele e da força dos seus braços enlaçando-a em um ballet de sensações. Não sabia em que momento se permitira viajar e não havia mais como voltar atrás.
O sinal era no olho direito, como um pingo da aquarela com a qual o Criador pintara o castanho dos seus olhos.
Mais que apaixonada, estava enfeitiçada. Os cantos dos olhos levemente caídos, o rosto bonito que ela acarinhava, o sorriso franco que nunca lhe faltava. 
Sapatos finos, uma dama para os outros, um caos para dentro de si.
Passos nervosos pelo barulho dos próprios saltos, tac tac tac, o barulho do sangue a correr em suas veias, o grito de cada molécula sanguínea seguindo umas às outras em movimentos circulares. As mãos tremiam e ela seguia valente, se parasse no acostamento a ferrugem iria corroê-la.
Precisava comprar cigarros. E açúcar para os inúmeros cafés ao longo do dia.
Um dia. Os olhos baixos. Os braços cruzados a se proteger do frio em plena manhã de sol, muito embora estivesse vestida em seu terno preto. "A mulher de Preto", assim Mr Dalloway chamara-a um dia.
Bendito Sol, não entendia por que alguns não gostavam da luz intensa e do calor do Sol. Ela adorava. Adorava caminhar ao largo do Fórum, captando em um relance todas as nuances dos transeuntes. A mãe a empurrar a cadeira de rodas do filho paralítico. Triste e ao mesmo tempo lindo. Testemunhava ali um acordo preexistente entre espíritos. O amor de uma mãe é, de todos os amores, o que menos oscila na estatística dos amores falhos. O lindo sorriso da menininha com o seu caderno onde estava escrito quarto ano levara-a às lágrimas. A mãe dissera que a criança estava aprendendo a ler. Um carinho de pontas de dedos nos cabelos finos de um bebê e a visão bem doce do sorriso da jovem mãe para ela. Dr Joung tinha cabelos finos de criança, disse uma vez em um abraço e ele não entendeu. Dr Jung não entendia nada e morreu sem conhecer a vida secreta das palavras. 
Encostou a cabeça no vidro da janela, enxugando as lágrimas em sua inseparável toalhinha rosa, sendo observada com respeito pelos que estavam de pé. O país das lágrimas é território onde só se entra um de cada vez. 
A moça queria ser mãe. Como poderia se já era tão difícil cuidar de si mesma em suas crises, os episódios psicóticos secundários e as alucinações, as vozes, os vultos. Todo o seu instinto maternal ela dedicava ao sobrinho mas ele tinha a sua mãe e o amor romântico pertencia a Mr Dalloway que por sua vez tinha o seu amor. Era um eterno dar-se e esvaziar-se para a Musa soprar em seus ouvidos as lindas palavras dos deuses, como Pã a soprar sua flauta à beira do rio.

Quando fecho os olhos pra te ouvir falar
meu pensamento é a margem de um rio
onde o deus ouviu, pela primeira vez,
seu suspiro de amor tornar-se música.

Sabia os versos de cor. Ela os escrevera em uma noite enquanto Mr Dalloway discorria assunto do qual não se lembrava mas da carícia de sua voz ela jamais se esquecera. Sentia-a como uma brisa a roçar-lhe o pescoço, soprando de leve seus cabelos longos. Mr Dalloway lhe dava noites com sol, como o poeta cantava:

"Peço um amor que me conceda noites com sol..."







Referências:
Noites com Sol (Flávio Venturini)
Álbum: Noites com Sol (2013)
Comprar CD: http://www.flavioventurini.com.br/produtos
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 13/08/2015
Reeditado em 13/08/2015
Código do texto: T5344582
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.