Um Assassino Improvisado

Ademir Álvaro da Silva, ou simplesmente Russo, como era chamado praticamente por todo mundo que o conhecia, começou a carreira como assassino tardiamente.

Por 55 anos de sua vida, Russo não se lembrava de ter matado nada que não fosse um inseto ou animal nocivo. Nem quando criança, tinha se juntado aos seus colegas para matar passarinhos e lagartixas com estilingues em mãos como era comum no interior onde tinha crescido. Russo sempre foi um cara muito decente, honesto, pacato e temente a Deus. Tirando uma ou outra pulada de cerca durante o casamento, ele tinha sempre seguido o caminho da integridade, ou pelo menos era isso que ele acreditava. Não achava que era feliz. Não desde sua infância, quando ainda se sentia livre. Depois que cresceu tudo o que via em sua frente era trabalho. Um dia após o outro, ganhando uma miséria, apesar do suor que derramava. Era injusto que tivesse tão pouco trabalhando tanto e uns poucos que não faziam nada tivessem muito mais do que ele podia sonhar em ter. Mas apesar disso, mantinha-se limpo, honesto, dentro da lei. Só que nem sempre um sujeito pode se conservar limpo nessa vida. Muitos escolhem se sujar para benefício próprio ou por perversidade, mas às vezes um sujeito limpo tem que enfiar os pés na lama. Ou até mais do que isso.

O país estava em crise. Política e econômica. Há pouco havia se descoberto um escândalo de corrupção envolvendo o presidente da república, um alagoano oligarca, chamado Fernando Collor de Melo. Entre ameaças de impeachment e outra escalada da inflação, parecia que o país ia desmoronar. Empresas demitiam os funcionários ou iam a falência e muita gente estava desempregada.

No começo daquele ano, Russo ainda era funcionário de uma empresa de segurança de valores no Estado de Pernambuco. Faltavam apenas cinco semestres para sua aposentadoria, se sua conta estivesse certa. Durante os dez anos que trabalhara na empresa, Russo nunca teve que dar um tiro em serviço, e por isso ele era infinitamente agradecido a Deus.

Já fazia planos e finalmente achava que seria novamente livre para fazer o que quisesse de sua vida depois de aposentado. Até que subitamente, numa manhã de sábado, viu no jornal o anúncio da falência da empresa em que trabalhava. Nenhum funcionário havia sido avisado. Apenas dizia ali no papel acinzentado do Jornal do Commercio que sua fonte de renda tinha ido para o saco. O seu presidente da empresa, um moleque de 28 anos, culpava a crise nacional e a incapacidade de pagar os salários de seus funcionários.

Na segunda feira, ele e outros tantos estavam no olho da rua. Sem salário e sem muitas explicações. Todos se revoltaram, mas seus gritos e protestos se diluíram em meio a tantos outros que se multiplicavam no país em crise.

Meses depois, todos os seguranças da finada empresa se reuniram para decidirem como iriam proceder quanto ao calote de seus salários e direitos trabalhistas. Todo mundo ali sabia que se a coisa fosse para a justiça, além da característica morosidade dos processos, havia grande probabilidade de não dar em nada. O dono da empresa era sobrinho neto do governador do Estado no momento. Provavelmente teria muitos juízes no bolso. Ia todo mundo ficar a ver navios.

Diante disso, os trinta e cinco seguranças decidiram que algo tinha que ser feito. Mesmo que não fosse na esfera judicial. Se o almofadinha do patrão não fosse pagar com dinheiro ele ia ter que pagar com sangue. Depois de muito debate e gritaria, ficou acordado que haveria um sorteio. Dois deles seriam escolhidos, e estes iam ficar responsáveis por fazer o patrão comer capim pela raiz. Todos colocaram seus nomes dentro de um envelope de papel, e então, o mais antigo de todos os funcionários, o Arlindo, tirou os nomes.

Os escolhidos foram, José Maria, um motorista de carro forte, e Ademir, o nosso Russo.

José Maria tentou sair pela tangente, mas Arlindo o lembrou de que ele tinha aceitado os termos do sorteio desde o começo. Russo se resignou e começou a pensar em como ia executar o serviço.... e principalmente se ele ia ter coragem de puxar o gatilho em cima do filho da puta que tinha lhe roubado anos de trabalho para curtir férias em porto de galinhas ou Fernando de Noronha, como era costume dos riquinhos de Recife.

Arlindo entregou um envelope a Russo, e este, inspecionando seu conteúdo percebeu que se tratava de um maço de dinheiro. Obviamente para cobrir as despesas para o serviço e para que os dois pudessem dar um sumiço em si mesmos depois de tudo feito.

Russo deu um tapa nas costas de José Maria e foi fumar um cigarro no fundo do galpão onde se dava a reunião.

Seu parceiro de crime sempre foi tido como um cagalhão. Frouxo e preguiçoso. Ele sabia que não poderia contar com ele pra fazer a coisa bem feita. Então decidiu que só podia esperar de José Maria que dirigisse o carro da fuga.

Arlindo tinha descoberto que o antigo patrão iria passar o feriado da semana santa em sua casa de praia em Porto de Galinhas, uma praia ao sul de Recife.

Sendo longe da capital, seria o momento ideal para dar um fim na vida do bandido.

Russo informou ao colega que José Maria dirigiria uma Kombi alugada até a casa de praia, e ele mesmo ia executar o serviço e fugiriam juntos para Maceió. De lá José Maria seguiria em para Aracajú e Russo iria de ônibus, para o sul da Bahia até que a poeira baixasse.

Russo ainda não tinha pensado em como ia tirar a vida do ex-patrão, mas achava que no momento ele iria saber. Não gostava da ideia de premeditação do crime. Ele não se via como um assassino. Mas aquele caso precisava de justiça e ele estava disposto a fazê-lo.

Chegaram os dois na casa do seu alvo na sexta feira santa.

José Maria resolveu que estacionaria a Kombi num terreno baldio duas ruas a baixo da casa do ex-patrão e esperaria o retorno de Russo depois de feito o serviço.

Depois das dez da noite, Russo desceu do carro, armado com um revólver 38 e um peixeira enfiada nos quartos. Ele se sentiu quase como um cangaceiro, só que todo vestido de preto.

Dando uma volta ao redor da casa, ele encontrou um bom lugar para pular o muro que separava a construção do terreno vizinho. O ex-patrão estava usufruindo de uma verdadeira mansão na beira do mar. O que fez Russo remoer um pouco a raiva de toda aquela injustiça. O cara realmente merecia uma bala no meio da testa, e por um momento, ele se sentiu satisfeito por seu nome ter sido escolhido para o acerto de contas.

Havia uma piscina, um gramado e uma área para churrasco entre o muro e a casa propriamente dita. Pela sujeira, parecia que uma festa grande tinha ocorrido durante o dia. Felizmente, não havia nenhum cachorro, mas Russo viu dois carros estacionados. Um Passat verde, provavelmente do ano anterior e um Opala preto.

Se escondendo por trás dos carros, Russo se aproximou da porta dos fundos da casa e percebeu que ela estava aberta. Haviam vozes no interior. Vozes de mulher.

Ele esperou até que se calassem e avançou para dentro. Da cozinha, ele caminhou, pé ante pé até a sala. De lá viu que, deitadas no sofá, estavam três garotas. Provavelmente prostitutas, pelas roupas e pelo linguajar que usavam para se comunicar. Na mesa de centro, Russo percebeu que estavam espalhadas garrafas de bebida e um pó branco, que era quase certamente cocaína. As mulheres, visivelmente drogadas se beijavam e riam em plena profanação do feriado de páscoa. Não havia sinal do ex-patrão, no entanto.

As mulheres, então, se levantaram e correram para a piscina gritando numa grande algazarra. Russo aproveitou o momento para subir as escadas que levavam ao primeiro andar da mansão.

Até aquele momento tinha sido fácil se esgueirar por ali. Mas não sabia se sua sorte ia durar, e principalmente, se ia conseguir fazer o que tinha vindo fazer sem chamar a atenção de muita gente, e assim não comprometer sua fuga.

Resolvendo não pensar no problema, ele galgou os últimos degraus e deu de cara com um corredor que dava acesso a quatro portas. Três quartos e um banheiro, ele imaginou.

Três delas estavam fechadas e uma estava entre aberta.

Russo esperou um tempo e tentou ouvir se havia algum barulho vindo de qualquer um dos cômodos. Não se ouvia nada...

Ansioso, ele caminhou até a porta entre aberta e viu o ex-patrão preparando uma banheira para um banho. Russo recuou até a escada ficou de tocaia esperando o momento certo de agir. Em alguns instantes o seu alvo saiu do banheiro e foi até um dos quartos. Pensando em surpreender o patrão no banheiro quando retornasse, Russo seguiu até a banheira e foi quando percebeu que havia ali também um pacotinho cheio do pó branco que havia na sala junto a um copo de uísque cheio pela metade.

Além de ladrão, o ex-patrão também era um drogado, pensou revoltado.

Naquele momento, no entanto Russo teve uma ideia. Despejou boa parte do conteúdo do pacotinho no copo cheio de uísque e dissolveu bem com o dedo. Escondeu-se dentro do Box do banheiro, que era separado por uma divisória opaca e esperou o retorno do seu alvo.

O ex-patrão voltou depois de um tempo, se desvencilhou da toalha que lhe cobria o corpo, sentou na banheira cheia de água, cheirou um pouco do pó branco e bebeu de um gole só o conteúdo do copo de bebida.

Russo observou atentamente o banho do homem que lhe roubara aposentadoria, esperando que tivesse alguma reação à quantidade de drogas que tinha ingerido inadvertidamente. Intimamente, ele torcia que aquilo fosse suficiente para lhe causar a morte, ou pelo menos para que caísse inconsciente. Esperava que fosse rápido também, afinal não podia ser avistado pelas mulheres.

Os minutos se arrastavam, e tentando não fazer nenhum barulho, Russo simplesmente esperou. Meia hora se passou antes que algo acontecesse. Finalmente, viu que antigo patrão convulsionava na banheira. Se debatia e aparentava estar se engasgando. Rapidamente, Russo foi até ele e contemplou a cena mais de perto. O seu alvo abriu os olhos e tentou pedir socorro quando viu que alguém lhe observava. Mas seus olhos só transpareceram mais desespero quando percebeu que se tratava de um desconhecido todo vestido de preto e como uma faca na mão. Russo então empurrou seu pé direito contra o peito do homem que aparentemente morria de overdose. Apesar do esforço necessário para mantê-lo debaixo d’água, Russo se viu saboreando o sofrimento do outro. Não levou mais do que alguns minutos antes que ele parasse de se tremer e então estava tudo terminado.

O assassino improvisado enxugou o pé num pano do banheiro e tomou o caminho de volta até onde José Maria tinha estacionado o carro.

Viu então que o parceiro tinha ido embora e lhe deixado sozinho.

Sem se lamentar, Russo caminhou, até que amanhecesse, para longe do local do seu crime.

Usou a parte do dinheiro que lhe cabia para comprar uma passagem de ônibus para Recife, se hospedou em um hotel barato no centro da cidade e esperou as notícias.

Não sabia como seria a repercussão do caso, mas se preparava para o pior. Na Terça Feira, foi noticiado em todos os jornais a morte do jovem empresário e promissor político, por infarto seguido de afogamento acidental na banheira de sua casa de praia no litoral sul. Toda a cidade lamentou o fato e a partir desse momento, Russo descobriu que tinha talento para aquilo.

Abafaram o caso da morte do ex-patrão, para encobrir o uso de drogas e também a presença das prostitutas na sua mansão. Afinal o nome da família do governador do Estado não podia ser manchado.

Tudo tinha saído melhor do que a encomenda. Mas ainda haviam algumas pontas soltas a se atar.

Um mês se passou e então resolveu contatar Arlindo. Marcaram um encontro no mesmo galpão onde fora feito o sorteio para o dia seguinte.

Quando chegou no local indicado, Russo pode ver o antigo colega sentado num tamburete, ouvindo um rádio de pilha e fumando um cigarro, no meio do galpão vazio.

- Parece que você sabe fazer um serviço bem feito, Russo. Ninguém ficou sabendo de nada. Falou Arlindo, indicando outro banco para que o assassino improvisado se sentasse.

- O moleque era um drogado... já estava amaciado quando cheguei. Só precisei dar uma ajuda para o mergulho dele.

- Bom! Imaginei que fosse isso. Disse Arlindo oferecendo-lhe um cigarro.

Russo não falou nada. Apenas pegou o cigarro e acendeu.

- Olha. Eu entrei para o movimento sindical. Acho que podemos precisar dos seus serviços outra vez. Se é que você se interessa pela coisa. Só precisamos que você seja discreto.

Russo olhou para o chão, deu uma grande tragada, mas manteve-se calado.

- Tem muitos patrões para matar ainda, cara. Tantos outros quanto o que você mandou para a vala.

- ‘Ta certo. Mas para isso eu preciso que você me diga para onde foi o José Maria. Tenho umas coisas pra acertar com ele antes de poder trabalhar pra você e para o seu sindicato.

Arlindo ficou sério, sem entender o motivo do pedido.

- Posso saber do que se trata a conversa que você quer ter com ele?

- O filho da puta me largou sozinho na noite do serviço. Foi embora e me deixou correndo risco. Sem contar que ele tem fama de fofoqueiro. Grande chance de dar com a língua nos dentes. E ai, tanto eu como você estamos ferrados.

Arlindo suspirou e lançou a bituca do seu cigarro longe com um movimento de dedos.

- Você tem razão. Da última vez que eu soube dele, ele estava nesse endereço. E riscou algo num papelzinho de um bloco de notas, que logo entregou a Russo.

- Obrigado. Disse o assassino laconicamente.

- Quando você tiver resolvido a questão, é só me procurar de novo. Com certeza vamos ter serviço esperando.

Russo saiu caminhando lentamente, observando o endereço que estava escrito no papel.

No fim daquela tarde ele já estava com o José Maria ajoelhado na sua frente, pedindo pela própria vida, nos ermos de um aterro sanitário.

Quando finalmente anoiteceu, Russo deu dois tiros no cagalhão e jogou o corpo no meio da pilha de lixo em decomposição

Talvez nunca fosse encontrado.

Novamente, se sentiu satisfeito, como na noite em que matara seu patrão, e pensou que finalmente tinha encontrado seu lugar no mundo.

Sua aposentadoria parecia cada vez mais distante. Mas ele sorriu, feliz, depois de muito tempo.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 14/09/2015
Reeditado em 19/09/2015
Código do texto: T5381810
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