Praia

E então ela se sentou ali mais uma vez e sentiu que era preciso recomeçar. Levantou a cabeça, olhou para os lados, até que seus olhos encontraram o espelho. Fixou tranquilamente seu olhar na imagem que ali se refletia. Cabelos loiros, levemente caídos sobre os ombros ossudos e salientes. Os olhos azuis estavam envolvidos em um roxo bucólico, quase lilás. O rosto alvo tinha perdido sua cor rosada, tonalidade característica de suas faces quando estava saudável e feliz.

Feliz.

Suavemente, pousou uma mão sobre a outra, procurando afagar a si mesma. Por um instante, fechou os olhos e sentiu o calor que buscava. Ele estava guardado na sua memória, em todos os seus sentidos. No mais íntimo de suas entranhas. Um cheiro de mar e vento invadiu o ambiente.

Era verão de 1944. A brisa soprava suave naquela manhã bucólica, ali, naquele cantinho de praia. O céu se coloria de um azul quase surreal. Dois olhos cor de amêndoa pousaram nos seus. Duas mãos longas e suaves envolveram as suas.

- Eu prometo que vou voltar.

As palavras do jovem soldado sentado ao seu lado dispararam como uma lança em direção ao seu peito. Uma lágrima brotou e escorreu. Várias lágrimas caíam descontroladamente. Puxou suas mãos de entre as dele.

- Não.

Não sabia ao certo o que havia negado. Se era o fato de ele estar indo para uma luta estúpida, que não era dele. Se era o fato de ele estar partindo agora que ela conseguira entregar seu coração a alguém. Se era o fato de amá-lo tanto e não conseguir se expressar.

Simplesmente, não.

Levantou-se e começou a andar em direção ao mar. Depois, correu. O jovem rapaz veio atrás.

De repente, ela parou e caiu de joelhos. Abaixou a cabeça e chorou. Ele abraçou-a, ignorando o fato de estarem sentados na areia e ele, com seu uniforme oficial, pronto pra partir. Sua vontade era chorar também, mas precisava transmitir alguma certeza à menina. Respirou fundo e se manteve firme, na sua posição, enquanto as lágrimas dela encharcavam-lhe o dólmã.

Abriu os olhos. Ainda via naquele espelho a mesma menina de alguns anos atrás, porém, detrás de uma penumbra de saudade e dor. Lembrava-se de cada momento sem ele ao seu lado. Lembrava de cada cheiro, cada toque, cada gesto. E assim se passavam os dias, olhando calendários, ouvindo os relógios, contando os segundos. E foi assim que descobriu que sentia uma dor talvez pior que a dor da morte: a dor da incerteza. Seu sorriso muito branco e luminoso, desaparecera. A voz altiva, angelical havia se transformado em murmúrios quase silenciosos. Os longos cabelos cacheados, enfeitados em fita, agora apenas pareciam cumprir sua função de crescer e estar ali. Durante um tempo, ela estivera sempre pronta. Ele voltaria a qualquer momento. Mas passado alguns anos, sua certeza foi se esvaindo, juntamente com sua alegria de viver.

Porém, ainda vivia. E era por isso que precisava fazer aquilo. Precisava recomeçar. Precisava fechar aquele livro, virar aquela página. Para sempre.

Hesitante, colocou os dedos no puxador de cristal e abriu a gaveta da penteadeira. Seus olhos pousaram sobre uma caixinha de presentes, decorada com motivos antigos. Abriu-a e segurou a ultima foto que tiraram juntos. Os dois ali, naquele mesmo cantinho de praia, sentados, com o mesmo vento batendo no rosto e desmanchando os cabelos. As mãos dele envolviam-lhe os ombros e os dois sorriam. Ela segurou a foto por um instante. Fechou a gaveta e pegou as luvas de passeio. E foi àquela praia.

Dez anos. Desde a ultima vez que havia estado ali. Ainda sentia a alegria de abraçá-lo e vê-lo sorrir torto para ela, sempre que ela estava nervosa com algo. Ainda se lembrava da flor roubada de quintal, uma rosa amarela, seu primeiro presente, em seu primeiro encontro com aquele que seria o amor mais terno de sua vida. Ela se ajoelhou na beira do mar e, por um instante, olhou o céu. Estava azul, embaçado por flocos de nuvens brancas. Abriu as mãos, onde segurava a foto. O sorriso dele parecia saltar da figura e iluminar tudo ao redor. "Preciso retomar... preciso voltar a viver..."

Calmamente, pousou a fotografia na areia e a cobriu. Sabia que, naquele lugar, ela seria certamente banhada e então levada pelas ondas.

Se levantou e caminhou descalça pela areia da praia vazia, sem rumo. Não olhou para trás.