Ausência


Quando ele chegou ela já não estava.
O Sol lançava seus últimos raios sobre os montes.
Depôs a pasta sobre a pequena mesa em madeira rude, feita para uma só pessoa.

Tudo na casinha pobre era para uma só pessoa. Nunca a esperança de haver dois ou três.
A cama de solteira, coberta por uma colcha de renda, estava arrumada. No fogão a lenha só havia cinzas frias como o olhar indiferente da solidão.
Deixara as janelas abertas ao sair. As janelas abertas e a porta encostada.
O vento e a chuva tinham desbotado o azul das cortinas. Sobre a escrivaninha, um jarro de girassóis mortos como uma tela de Van Gogh.
E um diário.
Mas não era um diário comum, era grande, volumoso, as páginas amarelecidas pela ação do tempo.
Folhas secas se aninhavam junto ao livro misterioso. Um resto de vela repousava no pires.
Uma casa de maribondo abandonada em uma das vigas. Teias de aranha tremulando ao sopro leve da brisa.
Teve sede mas não quis beber, certamente haveria lodo no fundo do pote.
À luz do crepúsculo ele via os poucos móveis da casinha de taipa de um vão, o chão de terra batida, o baú dos livros.
Sabia que havia livros dentro do velho móvel, os dois que ele lhe dedicara, os que ela escrevera e os que faziam parte de sua seleta biblioteca. Não precisava abrir para encontrar Cervantes, Victor Hugo, Goethe.
Desconfiou que ela mesma tivesse erguido a casinha. Não; dela só o sonho. O terreno no lugar certo, afastada das gentes.
E os cachorros? Ela gostava de cachorros. Decerto tinham-na seguido quando ela partiu, a memória perdida para sempre. E isso já devia ter ocorrido há um bom tempo, a julgar pela grossa camada de pó que cobria os móveis.

O tempo não tinha passado para ele. Continuava belo, vigoroso como um cavalo de general, o sinal no olho direito competindo em graça com a voz cariciosa. Os cabelos fartos que ela adorava acarinhar tinham embranquecido.
O rosto dela lhe veio à memória, o amor desinteressado, os beijos roubados entre risos. Nunca mais ele tinha conhecido um amor tão forte e tão imenso como o que ela lhe dera.
Um amor como só existiam nos livros. Ela era um livro que escrevia a si mesmo e ele a esquecera.
Não, não a tinha esquecido. O tempo é que tinha levado para longe os momentos deles e juntado compromissos, reuniões, a agenda sempre cheia.
Depois que saiu da faculdade continuou a lhe escrever mas ele não tinha tempo para responder. E as mensagens foram rareando mas não, o amor não tinha acabado. A memória é que ia falhando, deixava textos por terminar, se esquecia de tomar os remédios e de se alimentar. Dormia dias seguidos. Varava as noites do Sertão a contemplar o céu.
Ela sempre fora um elemento da Natureza. E sumira. Decerto tinha se encantado.

Pegou a pasta. Olhou as horas.
Lançou um último olhar pelo recinto. O retrato dos dois ao pé da cama. Olhou de novo para o grande diário. Que teria ela escrito antes de partir?
Fechou as janelas e deixou a porta encostada, para o caso de ela voltar. Entrou no carro e deu partida com uma saudade no fundo do peito.

Havia tantas estrelas no céu...
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 25/09/2015
Reeditado em 25/09/2015
Código do texto: T5394624
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