A CHAVE DA VIDA

Passavam das quinze horas e fui tomar meu café habitual e solitário. Eu tomava minha xícara de café quase que concomitantemente com minha cerveja, e hesitei em pedir o refrigerante para não chamar tanto atenção, naquele dia , eu estava tímida. Eu conseguia estar feliz sozinha... Ahhhh... Sozinha.... Que maravilha! Eu e minha solidão eram companheiras inseparáveis, e fiéis, e leais. Até que um indivíduo misantropo me interrompeu:

_ A chave.

Olhei para as mesas ao lado e o que vi foram pessoas conversando, rindo alto, gesticulando e, a um metro de distância, um olhar sério e focado em mim. Eu não conhecia aquele homem. Nunca o tinha visto. Decerto, não tinha falado comigo... Eu tinha ouvido errado. Voltei-me para meu café quente e minha cerveja gelada e, agora, já tinha chegado o momento de pedir o refrigerante para que eu pudesse combinar com os sabores anteriores. Eu olhava penetrantemente para as bolhas do café, para as gotas de água que desciam sobre a garrafa de cerveja, e tomava meu ´´refri.`` que já tinha chegado.

_ A chave.

Ora! Eu acabava de ouvir novamente aquela voz! Aquela voz como se fosse um pedido ou uma interrogação, não se sabia muito bem. Como se fosse a expressão de algo desconhecido, algo curioso, e também inquietante para mim. Levantei o olhar novamente e o mesmo indivíduo permanecia posicionado frontalmente a mim com um olhar desconfortante, súplico e quase fantasmagórico... Eu não sabia explicar. Dessa vez, ele estava mais próximo de minha mesa.

Eu fiz a mesma análise de antes: olhei para os lados. Eu queria saber se aquele sujeito falava realmente comigo, se era eu o alvo de sua verbalização. No entanto, diferente da primeira vez, eu fiz uma observação um pouco mais detalhada: eu quis saber se somente eu via aquela figura, se somente eu estava percebendo aquela imagem humana. É, eu devia estar louca.

Para saber se o homem ali estava tentando falar comigo, em fração de segundo, elaborei um plano, um teste. Levantei e fui até o balcão. Vejam bem. Enquanto eu fingia estar interessada nos chocolates, eu pude sentir um olhar percorrer cada ato meu; eu podia sentir e ouvir a voz daquele ser dizendo o que insistia dizer. Rapidamente, olhei e percebi que ele continuava a me encarar. Ele, o ser desconhecido, permanecia com um ar sóbrio e fixamente atento a mim. Comecei, então, a sentir um leve desconforto... Parecia que para ele, para o indivíduo, somente havia eu ali e mais ninguém. Para ele, eu era a única pessoa que existia. Ele não conseguia acessar a mais ninguém. Perguntei a moça do balcão o que aquele homem queria, pois há um certo tempo, ele estava parado, em pé, e poderia estar esperando atendimento (esta foi a desculpa esfarrapada que inventei para saber se a moça também conseguia ver aquele homem), e para minha surpresa, ela me ignorou completamente. O lugar estava lotado e, apesar de ela tentar atender a todos com presteza e atenção, era muito difícil agir assim.

_ A chave.

Quando voltei para minha mesa, e eu já sabia que agora somente eu poderia vê-lo, continuei por poucos segundos a fingir que nada ouvia. Debalde. Logo ouvi pela terceira vez a insistente solicitação afirmativa e exclamativa, talvez.

Dessa vez, quando resolvi encará-lo, percebi que agora, ele estava bem em frente a mim, bem ali, com ar sóbrio e sombrio. Sua face estava petrificada, mumificada. Não havia reação de sentimentos. Era um sujeito apático e de lábios finos, insistente e curioso. Estava vestido com um sobretudo cinza, chapéu, e permanecia com posição ereta, altiva e longos braços com mãos ao próprio corpo. Não sei se realmente me pedia... se me pedisse algo, estaria com a mão estirada.

Depois de um grave acidente em que fiquei por três anos completamente inconsciente, em vinte e quatro de setembro de 2015, eu saí do coma. Dias depois, já recuperada, eu, minha família e amigos decidimos comemorar minha prodigiosa volta a este mundo em um café que tinha sido inaugurado enquanto eu estava hospitalizada, perto do meu novo trabalho. Quando saíamos do ambiente, esbarrei em um moço e ele deixou cair uma chave. Ele me pareceu familiar ... Gritei por ele, ele sorriu e disse:

_ A chave, minha querida... Eu precisava dela... e de você.

Eliane Vale

Eliane Vale
Enviado por Eliane Vale em 27/09/2015
Reeditado em 27/09/2015
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