Flor Bela

 
Sentia que a vida tinha-a abandonado. Saiu de braços estendidos ao longo do corpo, o vestido preto de flores amarelas e os cabelos presos em uma trança quase desfeita.
Saiu e deixou a porta aberta para que ela partisse em seguida.
A esperança já tinha morrido antes dela. Morreu de esperar, a criança. Sem velório nem enterro. O corpinho foi ficando transparente até sumir.
Agora ela olhava ao largo e não via mais nada. Não havia mais nada. Só lhe restava fazer os preparativos para a viagem.
Estava conformada. Era como o brilho das estrelas mortas que as pessoas olham e sonham sem saber que já não existem.
Foi cortando os laços. Um por um. O mais forte, o laço do amor, ela desfez com uma afirmação. E essa frase pesou dentro de si como uma lápide.
O corpo reagia. Pedia mais uma chance. Podia ser diferente.
Mas a alma não acreditava mais.A alma queria ir embora. Sumir. Deixar de existir. Se Deus realmente existisse e fosse bom, não haveria "o outro lado", apenas a matéria voltaria aos elementos orgânicos do planeta e a alma se apagaria como o soprar de uma vela.

A matéria.
O não ser.
Deslizava por um túnel que parecia não ter fim. O pensamento se esvaía na certeza da partida.
Quando o Sol se escondeu por trás dos montes ela fechou a janela e desceu para dar as últimas ordens às empregadas. Não iria jantar. Pusessem a mesa apenas para o Doutor. Estava com dor de cabeça, iria se recolher e não queria ser incomodada.
Subiu as escadas lentamente, ouvindo o barulho que os saltos dos sapatos faziam no mármore. Os dezembros costumavam ser mais tristes.
O dia seguinte seria o seu aniversário. O marido tinha organizado uma recepção para os amigos mais chegados.
Os amigos.
Quão chegado seria um amigo? Haveria algum segredo que se pudesse esconder do melhor amigo? O professor estava longe, ela estava longe, tudo longe demais de tudo.
Haveriam palavras que não pudessem jamais ser ditas?

A porta do quarto permanecia entreaberta. Dentro, dela e do cômodo, escuridão. Bastaria abrir a janela para que as luzes espantassem as sombras mas não, não era permitido mostrar a face da dor.
A escuridão era um acolhimento. Um esconderijo.

Tocou as pérolas do seu longo colar como se estivesse a rezar. Uma mecha de cabelos se desprendeu sobre os olhos.
Sentada na cama, ela parecia meditar. Mas não havia mais o fluxo do pensamento. Só uma reta. Uma longa estrada onde não se via nada para além do alongar-se.
Finalmente sentia-se vazia. Tantas coisas disse e escreveu que as palavras secaram. Sentia-se uma fonte abandonada onde nem as folhas do outono fossem pousar.
Abandonara-se. Havia tanta beleza poética no abandono!
Como seria bom ser uma estátua. Não ter um coração.
Nunca ter tido um coração. Sem ele não haveria dor.

Pousou as mãos finas sobre o peito. Os frascos dos remédios já repousavam vazios ao pé da cama.

Lá fora o luar caminhava como uma donzela descalça...
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 20/10/2015
Reeditado em 20/10/2015
Código do texto: T5421304
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