A Lenda
 
Os olhos castanhos alongavam o olhar até onde a vista podia alcançar, para além da Flor do Prado, da Fonte das Sereias, sobre as árvores e telhados avermelhados pelo entardecer.

Estava tão triste. Uma bela moça nunca deveria ficar triste mas ela era diferente, sensível, reservada, guardava no peito como em um relicário as paixões e as dores de uma época.
Amarrotava distraída o laço do vestido de tafetá azul. Via a família arruinada, o pai afogado em dívidas de jogo. Não tinha mais vontade de sair com as amigas, ir ao Passeio, caminhar às margens da lagoa. Até do jovem comerciante que a cortejava ela se esquecera. Seu pensamento estava no pai.
O pai.
O que o levava a destruir-se daquela maneira? Que dor tão profunda obrigava-o a fugir para o vício das cartas, que ferida buscava cicatrizar ou pelo menos esquecer nos braços das mulheres do mundo?
Suas faces enrubesceram quando pensou naquelas mulheres. Balançou a cabeça como para expulsar o pensamento e caminhou lentamente ao longo do terraço.
Passava noites em vigília, apreensiva, temendo que o pai não retornasse.Quando a madrugada clareava ela enfim o via descer do carro com passos trôpegos e dirigir-se ao escritório onde permanecia de cabeça baixa, o rosto escondido entre as mãos.
Ver o pai naquele estado dilacerava-lhe o coração. Tinha vontade de invadir o recinto e tomá-lo nos braços como a uma criança, dizer-lhe que tudo ia ficar bem, que pouco importava morarem no luxuoso Solar da Vila ou num casebre no litoral. O mais importante era ficarem juntos, a mãe, o pai e ela. Trabalharia, faria rendas e bordados, qualquer coisa para tirar o pai daquele abismo.

Mas não fazia nada. Tinha um temor respeitoso pelo sofrimento dos outros. Então voltava, silenciosa e descalça para a sua alcova, duas lágrimas grossas rolando pelas faces pálidas.
Percebia que a mãe também estava acordada quando passava pelo corredor. Pobre mãe, casara-se jovem e bela, cheia de sonhos, para agora ver o nome da família na boca do povo, os olhares apreensivos dos empregados que cada vez mais escasseavam.
Tocava piano divinamente, a gentil senhora. Tivera uma preceptora vinda de Paris. Mas já não se ouviam valsas naquele palacete. A felicidade abandonara aquele lugar.
Cansada e triste, a moça encostava a cabeça na janela, os cabelos presos em uma trança negra. Dali via a barra desfazer-se no horizonte e os passarinhos, em algazarra, começarem a viver o milagre de um novo dia. Só então ela se deitava e adormecia, a fronha molhada e os lençóis no chão.

Em tudo isso ela meditava enquanto caminhava sozinha pelo longo terraço.A dor a emudecia. Recusava os convites para ir a bailes, ao cine, aonde quer que fosse ouviria sussurros e risos pelas suas costas. Na sociedade fortalezense cada um valia o que tinha.
Sentindo o vento no rosto ela abria os braços e desejava lançar-se do alto, virar pássaro e voar no ar, ir para longe de toda maldade e hipocrisia daquela cidade.
Quando o relógio da Igreja bateu as dezoito badaladas aquelas mãos suaves secaram as lágrimas do rosto e fizeram o sinal da cruz. O brilhante solitário em sua mão direita, presente de aniversário, sabia-se insignificante. Era ela a jóia rara, ela, a moça gentil.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 21/10/2015
Reeditado em 21/10/2015
Código do texto: T5422387
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