Na cova das leoas

O clima era de disputa entre os professores para ver quem seria a primeira a me desmascararar. Cai de paraquedas na universidade, os professores eram todos doutores. Até hoje não sei como consegui naquele dia mobilizar pessoas, ditas “tão ocupadas”, que mal paravam para me dar atenção. Certa vez, tive que correr atrás de uma delas, queria apenas tirar uma dúvida sobre a matéria, e ela por sua vez, andava rapidamente sem se quer olhar para trás. O corredor parecia interminável, quanto mais eu insistia, mais ela acelerava. Nunca passei por tamanha humilhação.

Foi muito difícil conseguir acompanhar os estudos e a turma, os alunos em sua maioria eram jovens, alguns até com outras formações acadêmicas. Eu, recém-separada, ainda de luto de minha querida mãe, já com meus quarenta e cinco anos de idade, ingressei na faculdade para não entrar em depressão. Fazia mais de vinte anos que não estudava.

Após concluir o magistério, casei, engravidei e parei de estudar, para me dedicar exclusivamente ao casamento e aos filhos, tive três, um atrás do outro. Fiz o curso de letras por ser minha única opção, pois foi o curso que consegui bolsa integral. Minha situação financeira não era nada boa. No inicio foi muito difícil, no máximo consegui ser uma aluna mediana. Às vezes, com muito esforço conseguia tirar uma nota melhorzinha.

Com o passar do tempo, melhorei bastante, fazia trabalhos bons. Mas, percebi que fui rotulada pela professora de produção textual, logo dessa matéria que em minha opinião era uma das mais importantes. Meus trabalhos não eram tão diferentes dos outros alunos que tiravam nota com ela, mas eu nunca conseguia nota com Tânia. Parecia perseguição. Pensei até em desistir da faculdade, felizmente vi a tempo que não valia a pena.

Já gostava do curso, lia, escrevia e pesquisava com prazer, senti que era realmente o que eu queria fazer, e assim, resolvi continuar. Lá pelo quinto semestre, Tânia pediu que fizéssemos uma crônica, sobre qualquer assunto que despertasse nosso interesse naquela semana. Em casa, enquanto assistia à televisão, vi uma propaganda de pão de forma que brincava com a palavra pão, dando duplo sentido associada à imagem de um homem bonitão.

Tinha também um trocadilho com as palavras glúten e glúteo que dava a entender que o pão sem glúten era tão gostoso quanto o glúteo do belo rapaz. A cena acontecia a beira da piscina. Belas meninas conversavam alegremente e saboreavam sanduíches de pão sem glúten, ao mesmo tempo em que observavam um bonito rapaz que passava de sunga com os glúteos bem atraentes. Na hora percebi que aquele comercial daria uma crônica bem interessante.

Fiz a tal crônica tão bem feita, que surpreendeu a professora Tânia. Ela me chamou para uma conversa em particular e deixou bem claro que duvidava da autoria do meu texto. Fiquei assustada, tentei convencê-la do contrário, mas não consegui. Lembrei então, que algumas vezes ela havia feito perguntas a respeito de outros trabalhos dela, como se duvidasse de minha capacidade. Nunca dei muita importância as suas insinuações, estava tranquila quanto à autoria dos meus trabalhos.

Mas dessa vez foi diferente, fiquei indignada com sua desconfiança, e disse que ela não tinha o direito de duvidar de mim e que podia provar que o texto era meu. Cheguei a dizer que traria as muitas folhas de rascunho que havia rabiscado e amassado. Ela perguntou-me porque eu guardava os rascunhos, respondi que era um hábito. Ironicamente ela respondeu que eu poderia no futuro fazer uma boa pesquisa. Pouco tempo depois fui convocada para uma reunião.

Enquanto fui conduzida até a sala por um funcionário, me senti muito apreensiva, mesmo estando com a consciência tranquila. Quando ele abriu a porta, levei um susto. Lá estavam elas, as leoas, sentadas à volta de uma mesa redonda com ares de superioridade. Leoas ou amigas da onça? Ali, havia claramente um clima de disputa. Entreolharam-se com ares de satisfação, os lábios não sorriam, mas os olhos sim. Fui jogada na cova das leoas. Uma das cadeiras estava vazia, presumi que fosse a minha e me sentei.

Cumprimentamo-nos e começou imediatamente o interrogatório. Uma a uma faziam perguntas do tipo: quem? Como? Onde? Quando? Por quê? E assim por diante, uma verdadeira tortura. Após ter respondido a todas as perguntas me senti estraçalhada, meio tremula e os meus olhos lacrimejavam.

Uma das doutoras se pronunciou:

- Foi ela! Sem dúvida alguma, quem escreveu o texto.

Vi no rosto de todas elas estampada a frustração. Pedi licença e me retirei da sala de cabeça erguida com os olhos ainda marejados e saboreando o gostinho da vitória, uma sensação inexplicável, de decepção e ao mesmo tempo de satisfação. Algo me dizia que aquele episódio seria determinante. E foi, além de ter descoberto naquele momento o meu dom para a escrita, as tais reuniões também, a partir daquele dia foram terminantemente proibidas.

Sai inteira da cova das leoas. Adorei encontrá-las depois nas salas e pelos corredores com cara de bunda, ops! De glúteos! Para variar, nem dessa vez Tânia me deu dez. Acho mesmo que esse foi o único trabalho meu, que ela realmente leu.

Aliás! Não sabia o poder que tem os glúteos de um pão... Santa abundância!

(FLORIlÉGIO - 2015)

Sandra Ferrari Radich
Enviado por Sandra Ferrari Radich em 22/10/2015
Reeditado em 09/05/2016
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