O Suicida Macho
 
Leitores, depressão é coisa muito séria.
A Organização Mundial de Saúde estima que, a cada quarenta segundos, uma pessoa cometa suicídio devido à doença.
Não se sabe quais as causas da depressão, se genéticas, existenciais, espirituais. É um enigma para a ciência. E é algo tão particular que só entende quem dela sofre. Não adianta falar de dor na alma, angústia, vazio no peito, perdido. Palavras não definem depressão. Mas se uma pessoa que sofre desse mal terrível chega para outra também por ele acometida e comenta sua desgraça é plenamente compreendida.

Mas o que ocorreu no Sertão do Ceará foi o seguinte; um cabra macho, valente da gota serena, chorava para se meter em briga e matar um. Só andava armado, a peixeira bem amoladinha metida na bainha de couro curtido. E não fazia empenho de esconder a arma não, ora mais, cabra macho não tem medo de ser preso.

Acontece que um dia o nosso herói começou a apresentar sintomas de depressão. Uma dor pungente, uma vontade de chorar que ele só sustinha quando os outros estavam vendo mas que dava vazão quando estava sozinho no quarto tomando uma cana amarelinha. Ai da esposa se entrasse no recinto e o flagrasse naquele estado, levaria uma surra memorável para largar mão de ser enxerida. Então a pobre fazia de tudo para ficar invisível. Não sabia o que se passava com o marido nem tinha coragem de perguntar. Na hora do almoço ela ia com pisada de alma e batia de leve na porta:

"Fulano, o almoço tá pronto."
"Vá pra puta que pariu!"

Era esse o único diálogo que existia na casa. A mulher, coitada, tão boa, preocupava-se com o seu homem. Comentava com a comadre por cima da cerca sobre o comportamento estranho do marido.
A comadre, metida a macumbeira, um dia comentou com ela sobre "trabalhos espirituais". Só podia ser isso, algum desafeto, enraivecido, tinha amarrado o nome do nosso herói na boca do sapo, por isso ele estava daquele jeito, se amofinando. E deu à amiga um papelzinho com o endereço de um pai de santo que fazia e desfazia despachos.

A mulher ficou muito satisfeita. O seu amor ia ficar bom. Quando ele saiu para suas caminhadas solitárias pela vareda do gado ela, "sem querer", deixou cair o papelzinho no chão do quarto. Quando o cabra voltou, deu fé do papelzinho e ficou matutando. Será que era aquilo mesmo, macumba?
E passou pela cabeça os nomes de quem lhe queria mal. A esposa inclusive entrou na lista. Decidiu que no dia seguinte ia procurar o macumbeiro. Encheu a cara e dormiu.
No outro dia, com a gastura no peito ainda mais forte, rumou para a casa do pai de santo. O cavalo chega empinou quando pisou no terreiro, tantos espíritos, caboclos, pretos velhos e pombas giras guardavam aquele lugar santo.
Tirou o chapéu e entrou na casa. Muitas imagens, Iemanjá, Oxum, Oxóssi. Uma coisa linda. Tudo muito limpo e organizado.
Encontrou o pai de santo sentado em sua cadeira, com o orumilá à sua frente. Pediu a bênção não, ora mais. Foi direto ao ponto. Contou o que lhe estava acontecendo, claro, morrendo de vergonha porque homem não chora.
O babalawo, um homem magro, pequeno e de olhar tranquilo, ouviu com muita calma a história do cabra. Perguntou se ele queria consultar os orixás. Queria sim. Pegou o agogô, pronunciou umas palavras em yorubá, escutou atento o que disse a entidade presente e disse ao cabra o seguinte:
"Meu Sr, o que lhe ocorre é um chusma de espíritos obsessores que estão lhe atacando. O Sr já matou muita gente. Eles estão com ódio e querem justiça."

Oh, rapaz. Pra que. O cabra ficou muito puto da vida, como é que era a história, aqueles fi de chocadeira que ele tinha mandado pro inferno estavam se mancomunando para baldear a vida dele?
O sacerdote explicou que aquilo podia ser resolvido, fariam um ebó, fechariam o corpo dele, ficaria protegido das influências nefastas. Ah, meu filho, daonde. O homem queria era pegar esses espíritos e matar de novo, estava louco de ódio. Pagou a consulta e chinelou, passou na venda, comprou uma corda e foi direto pra casa. Passou como um pé de vento pela mulher. Fechou a porta, armou o laço e se dependurou. Nisso a mulher, olhando pelo buraco da fechadura, já estava alarmada, "meu marido vai se enforcar, vala minha nossa senhora das graças!", e correu a buscar uma faca na cozinha, ele podia lhe dar a maior surra da galáxia mas ela queria ele vivo, angustiada, procurou as facas, sem se lembrar que tinha embarcado todas para o caso do marido chegar bêbado e querer matá-la. Ô agonia, se atrepou na forquilha da cozinha feito uma macaca, foi se segurando nos caibros do alpendre e subiu no telhado para buscar as facas.
Enquanto isso, no quarto, nosso herói já estava com meio palmo de língua para fora, se sacolejando, o espírito já ia longe, chegando no umbral. Deu nem bom dia pro Cão, passou direto com a peixeira na mão e avistou a curriola de espíritos que queriam o seu mal, estavam sentados em torno de uma poça d'água dando gaitadas, observando o inimigo a morrer enforcado. Eita, que dia de glória. Nem perceberam quando o espírito do cabra se aproximou bem de fininho e meteu o grito, "qual é o féla da puta que vai experimentar primeiro a ponta da minha faca?"
Foi um salve-se quem puder. Até depois de mortos os inimigos se pelavam de medo do cabra. Fugiram que o rabo era um rei, só estava aberta a porta do inferno e se tem só tu vai tu mesmo, o fogo eterno era um spa perto da ira do sertanejo.
O Cão, balançando o rabo displiscentemente, deu valor ao espetáculo, queria um cabra daquele para torturar seus hóspedes mas que pena, o espírito foi ficando transparente, ficando, ficando, até que sumiu. E na Terra o cabra se tacou de todo comprimento no chão, a esposa tinha cortado a corda do suicida e estava lá, "linda" e valente, em pé sobre o banquinho de madeira com uma faca na mão.

O cabra não esperou nem recuperar plenamente os sentidos, derrubou-a com uma pesada e deu-lhe uma surra fenomenal para nunca mais ela atrapalhar seus negócios.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 24/10/2015
Código do texto: T5425802
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