GUERRA

“Guerra. A expressão de maior horror humano e provavelmente a mais antiga também. Não sou um cientista, ou estudioso – desses que se perdem nas grandes bibliotecas das universidades, que publicam estudos que mudam a formas que outros estudiosos tendem a pensar – mas ainda que não tenha as habilidades necessárias que fazem dos intelectuais se tornarem intelectuais, fico a me perguntar se ela, a guerra, nasceu ainda quando o ser humano vivia a vagar em grupo, coletando sua comida conforme amadureciam os frutos, vacilavam os animais pequenos, enfim, enquanto o homem era um esboço do que conhecemos hoje. Seria a guerra uma necessidade da nossa espécie? O próprio ato de nos matarmos superaria a própria justificativa que impulsionava os homens ao combate? Digo... Seria a politica? Os tais valores morais? Enfim... Haveria um bem maior atrás do sangue, dos gritos e todo aquele terror que...”

Um som abafado despertou o soldado Joaquim do devaneio que preenchia as paginas do já sujo diário. O olhar temeroso, ressabiado como de um animal selvagem em território desconhecido. Arisco ele se levantou, as pernas bambeavam, com dificuldade ele enfiou o pequeno caderno por dentro do uniforme imundo.

Joaquim estava em batalha há quase um ano, mas felizmente não havia encontrado tantos conflitos como imaginava, porém o medo da morte rodeava sua mente, tirava-lhe o sono. O rosto já carregava uma expressão cadavérica, os olhos esbulhados, tudo fruto desse medo horroroso que nasceu com os bombardeios e os colegas feridos que gritavam de uma maneira que talvez só àqueles que já presenciaram esse momento incomum que é o resto de vida que sobra ao condenado a morte, aquele minuto interminável que carregar um gemer lamentador que apesar de calma é desesperador. O faz querer que a morte arrebate o infeliz de uma vez. Para Joaquim aquele minuto seria o mais solitário do mundo, fosse para o futuro defunto, fosse para o espectador daquela tragédia, uma solidão melancólica, porém corriqueira em dias de guerra.

O jovem soldado de dezessete anos não queria aquilo. Provavelmente ninguém desejava uma morte dessas, mas para militares em guerra essa era uma possibilidade real, diária. Mas não havia alternativa para o inexperiente Joaquim, ele precisaria averiguar. Havia tomando junto de sua companhia aquela pequena vila à alguma horas, e ele, na sua inocência adolescente resolvera escrever um pouco distante do acampamento erguidos pelos companheiros. Aquele som – que o despertara enquanto escrevia seus segredos no diário – fazia sua mente turbulenta conjecturar inúmeras possibilidades: talvez um inimigo escondido esperando o céu escurecer para fugir, talvez ferido. Ou quem sabe mais de um homem, um grupo pequeno que poderia muito bem surpreender a todos na madrugada. Buscar por ajuda poderia leva-los a debandar em fuga, ou adiantar um ataque que ainda que não pudesse matar a companhia, poderia resultar no sono eterno do próprio Joaquim. Ele tinha medo.

Furtivamente afastou-se da casa em ruinas que tentara se aconchegar antes, contornou suas paredes rachadas até aproximar de sua vizinha, outra casa em ruinas e de onde Joaquim julgava ter ressoado o fatídico som. Seu telhado estava aparentemente em melhor estado de conservação e tanto as portas quanto as janelas mantinham-se fechadas. As pernas tremiam, a respiração estava ofegante e o coração prestes a sair pela boca, o corpo comportava-se de maneira insuportável, temia que o simples som emitido por ele pudesse ecoar pela vila. Buscou com os olhos se poderia ver alguma alma amiga. Nada. Todavia, no seu percurso de rodear o terreno notou que a porta dos fundos parecia entreaberta. Aproximou lentamente e com a ponta do próprio rifle tentou abri-la e um ranger que machuca os ouvidos atravessou a casa escura. As mãos trêmulas não conseguiam manter firme a arma nos braços, uma sensação agoniante, ele ofegava cada vez mais e o coração estava prestes a explodir. Não era possível notar o interior do casebre frente aquele terror que tomava cada partícula do seu ser, notara apenas um portal a sua direita, próximo à entrada. O cômodo era uma cozinha – ou o que restava dela – mas Joaquim não fazia questão de se ater a esses detalhes, não havia vida ali e para ele bastava.

Com agilidade avançou até o portal e o atravessou. Um estrondo! Como coisas caindo no chão, latas ou algo parecido. Joaquim paralisou, as mãos vibravam o rifle. Um homem caído no chão, apoiado num móvel. O uniforme denunciava o inimigo, a mancha escura numa das pernas declaravam-no ferido. Ele ergueu as mãos usando os antebraços para ocultar o rosto enquanto balbuciava palavras numa língua desconhecida. Joaquim engatilhou a arma com certa dificuldade, o rosto inimigo se mostra e derruba lagrimas seguida de um gemido de suplica, enquanto a face balançava em negação. Joaquim vê aquilo como um pedido de piedade, o homem que aparentava ser mais velho lembrava-lhe o pai. Os olhos lacrimejavam, a garganta apertava, o dedo parecia recusar-se a apertar o gatilho. Joaquim chorou também. O corpo entregou-se ao cansaço e o rifle abaixou-se, ele não poderia matar aquele homem. Sentiu todo o peso do mundo, toda a culpa pelo sangue que seu exercito derrubara naqueles anos de batalhas intermináveis. O inimigo entre lagrimas sorriu com lábios finos enquanto estendia a mão que tremiam como também tremia o jovem soldado. Joaquim ajoelhou-se como se a humanidade tivesse um peso insuportável, pensou no sorriso da mãe, no verão aconchegante, nas aguas frias do rio, nas brincadeiras de criança. Aquele inimigo lhe trouxera a mente algo que a muito esquecerá, a sensação de paz, de segurança. Deixou a arma deitada no chão e resolveu aproximar-se apertando com força a mão do até então inimigo. Um sorriso fraterno é trocado entre lágrimas. As mãos se agarram com firmeza. Porém aquele segundo mágico se transforma, o brilho no olhar se apaga no mesmo segundo. A outra mão de seu oponente fora ao chão, pegando abaixo da coxa uma faca que seguiu num golpe mortífero. O terror voltou. O homem gritou como um monstro, e Joaquim como a criança que era, estava completamente desarmado em todos os sentidos, e se viu preso àquele homem como a presa ao predador.

É o fim!

Pensava Joaquim enquanto entre lágrimas repetia incessantemente “não!”. Ele não queria morrer, não pensava em matar aquele homem, apenas em sobreviver enquanto seus olhos fitavam os do assassino, que rangia os dentes. Sua obstinação era palpável. Eles rolaram pelo chão empoeirado da casa, os braços que mais pareciam de aço não vacilavam em momento algum. A lâmina aproximava-se do rosto do garoto-soldado. Joaquim começava a cogitar entregar-se, não tinha mais forças, a morte parecia inevitável, até mesmo desejada, seria o fim daquele inferno, das bombas, das balas zumbindo pelo ar, dos gritos, do sangue. Um último suspiro, a lembrança do sorriso da mãe naquele minuto que antecedia o apagar das luzes da casa. Era o fim. Adeus Joaquim.