Dentes de Marfim


-Por que você não atende a porra do telefone?
-Atenda você.
-Tá bom, eu vou atender esta merda, e depois que eu ouvir a pessoa dizer; "eu poderia estar falando com a Morgana", vou pegar o martelo e fazer picadinho desta porra de telefone.
-Não não não não atenda, eu atendo.
-Vou sair, não me espere para o jantar.

-Boa tarde Juca.
-Oi Doutor, tudo bem? Chegamos sedo hoje.
-Eu sei que está sedo mas precisei sair de casa antes do planejado. Nossos amigos confirmaram a presença?
-Confirmaram. Está tudo bem em casa Doutor?
-Juca, você sabe a quantos anos nos conhecemos.
-Claro que sei, trinta e dois anos.
-Exatamente, trinta e dois anos, nos aturamos a trinta e dois anos.
-Doutor, sinto que algo está errado, alguma coisa está te preocupando. Algum aborrecimento?
-Nenhum aborrecimento novo meu amigo, são os aborrecimentos e preocupações de sempre. Trinta e dois anos Juca, você e eu passamos por poucas e boas juntos nestes trinta e dois anos.
-É verdade Doutor. E eu passaria por tudo outra vez ao seu lado meu caro amigo.
-Acredito em você Juca, e sabes que eu também. Os bons momentos de um casamento deveriam durar tanto quanto os de uma amizade...
-Precisamos ter uma conversa seríssima Doutor. Tenho pensado nisto desde o ano passado mas esperei todo esse tempo para amadurecer a coisa toda e não deixar pontos soltos. Colocarei nossa amizade em xeque, no entanto é decisão tomada e não voltarei atrás.
-Se você pretende me dizer que vai cometer suicídio não diga, pois esta seria a única decisão por ti tomada que me levaria a tentar faze-lo mudar de ideia. Se for este o caso eu não quero saber.
-Vou atender o telefone, já volto.


-Juca você está mais pálido que o de costume, notícias ruins?
-Não. No telefone a conversa foi sobre negócios. Comprei uma casa na região dos lagos e o advogado que está cuidando do negócio me disse agora que a escritura está pronta. Amanhã vou assinar a papelada.
-Região dos lagos? Mudou de ideia? Seu sonho sempre foi morar na região serrana.
-É verdade, eu adoraria morar na serra, tudo lá me atrai, principalmente o clima, você sabe.
-Sim eu sei, mas porque você optou pela região dos lagos?
-Foi o amor, para viver ao lado dela eu moraria em qualquer lugar do mundo e ela adora aquela região.
-Juca! Que novidade é esta? Quando foi que aconteceu? Quem é ela? Fico feliz meu amigo. Todos da turma sabemos que você amava a falecida Izabel. Somos testemunhas da sua tristeza. Oito anos viúvo. Bom saber que você reencontrou o amor.
-Nunca amei a Izabel e ela nunca me amou. Nosso casamento foi tramado, arquitetado para solução de problemas de ambos. Tudo feito em comum acordo. Sempre houve amizade companheirismo e respeito no nosso relacionamento, mas não nos amávamos. Ela sempre amou outro homem e eu sempre amei outra mulher. É verdade que a morte da Izabel me abateu profundamente, mas não pelo motivo que supões. Ela era uma pessoa boníssima, merecia melhor destino.
-Você casou com a Izabel, que amava outro homem, e você amava outra mulher. Não perguntarei que problemas vocês tinham para leva-los a arquitetar um casamento. Certamente é coisa muito séria e portanto estritamente pessoal. Antes de você ir atender o telefone dizias que precisávamos ter uma conversa séria, muito séria. Me diga, querido velho amigo, de alguma maneira eu faço parte desse enredo?
-Direto ao ponto. Morgana é a mulher que eu ja amava quando conheci a Izabel. Ano passado declarei meus sentimentos para Morgana quando casualmente nos encontramos no mercado municipal. Ela ficou visivelmente constrangida não disse uma palavra e foi embora. Não nos vimos mais até junho passado, quando ela me ligou marcando encontro para conversarmos. Disse-me que a vida estava insuportável, que você dava mostras incontestáveis de que a qualquer momento a feriria fisicamente, pois emocionalmente amiúde o fazias. Eu disse que jamais você nela tocaria, e o disse com convicção, pois sei que você jamais espancaria uma mulher. Mas em contrapartida ela me convenceu que você tem sido rude nas atitudes e no seu linguajar ao falar com ela. A conversa foi longa. Propus morarmos juntos, ela sairia de tua vida e viria morar comigo. Ela disse que decidira te abandonar, sair da tua vida, mas que não poderia morar comigo por não me amar. Em agosto ela me ligou e disse que aceitava morar comigo, não suportava mais tanta humilhação e palavrões, mas que ela queria sair da cidade e, se possível, mudarmos para a região dos lagos. É este o enredo meu amigo Doutor. Eu e Morgana vamos morar juntos.
-É um enredo surpreendente amigo Juca. Desejo boa sorte aos dois.
-É isso? Não tens nada mais a dizer?
-Tudo que Morgana disse é verdade, mas você estava certo, eu nunca ergueria a mão para ela ou para mulher alguma.
-Você não está aborrecido?
-Me aborrece não ter descoberto porque meu pai me deu este nome ridículo de Doutor Dentes de Marfim.
Yamãnu_1
Enviado por Yamãnu_1 em 21/11/2015
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