Boa noite, amor...


 
Era um rapaz pacato.
Tinha como horizonte para sempre o serrote que se avistava ao largo, lá onde o milharal terminava.
Era como um ritual inconsciente, levantar-se da rede ao cantar do galo, tomar uma xícara de café passado na hora, pegar a enxada, o embornal e sair para o roçado.
Ele não se pensava e por isso era feliz, daquela felicidade que é sem saber.
Mas também para ele, condenação de todos nós! o amor chegou.

Um primo que morava em São Paulo apareceu em um domingo de manhã para visitar os parentes.
O rapaz, então com dezessete anos, ouvia a missa pelo rádio enquanto a família permanecia na sala em alegre conversação.
Na hora da comunhão a irmã mais nova foi chamá-lo, o primo estava a mostrar fotografias da cidade grande.
Em princípio ele zangou-se com a pequena, não era direito interromper assim um momento solene. Mas a curiosidade imiscuiu-se em seu pensamento, essa semente ruim que a serpente original plantou no seio da primeira mulher.
Nunca tinha visto uma fotografia. Só ouvira falar como era. Queria ver.

Desligou o rádio, o clique do botão entoando como uma nota do destino na cozinha onde o tamborete de couro, ao pé da mesa, permaneceu.

O primo, todo pronto, convidou-o a sentar-se ao seu lado e pôs-se a mostrar-lhe um álbum. O Ibirapuera, O MASP, o dia dos seus anos.
Ele não deixou que o primo virasse a página. Ali, diante dos seus olhos, estava a fotografia da moça mais linda que ele jamais vira na vida. Ela sorria, batendo palmas e cantando parabéns, olhando direto para a câmera.

Olhando para ele.

Teria sido aquele o momento? Ou a alma já sabia, desde o início, que era seu destino perder-se naquela parte do caminho?

Pediu ao primo aquele retrato para si, ao que foi atendido com gargalhadas. Era realmente uma figura.
Colocou o retrato da moça na moldura do espelho. Toda vez que ia pentear-se, olhava para ela e sorria.

Dias depois inventou de comprar uma mesinha nova para o seu quarto, ora mais, não tinha direito? Pois trabalhava então para quê?
O pai achou justo. Deixou que ele fosse à cidade comprar a que melhor lhe aprouvesse.
O que ninguém sabia era que, em segredo, ele comprou também uma delicada toalha rosa bordada com flores brancas, um vaso de cristal e um porta-retrato.
Voltou para casa alegre mas, se alguém tivesse reparado bem havia algo diferente nele, o seu olhar estava vago, distante.
Passou a tranca na porta do quarto e não permitiu mais que ninguém lá entrasse. O pai achou justo, era rapaz, era o mais velho, tinha direito à privacidade.
Passou a voltar todas as tardes do roçado com uma flor. Entrava e ia direto para o quarto, às vezes não saindo para jantar.

Um dia ele não se levantou para a lida. A mãe bateu na porta, chamando-o. Bateu de novo e ele respondeu que não ia trabalhar, estava indisposto.
A mãe achou justo. Foi cuidar dos afazeres domésticos.
Mais tarde, colhendo feijão, o irmão do meio encontrou embaixo de uma touceira a comida do irmão que a mãe mandara por vários dias pela menor.
O rapaz não estava se alimentando. Ele não sabia mas o irmão mais velho estava vivendo de amor. Gritou pelo pai e voltaram correndo para casa, a mãe alarmou-se e passou mal, o pai entrou, forçou a porta do quarto do filho e encontrou-o ajoelhado ao pé da mesinha enfeitada com flores murchas e um toco de vela, conversando baixinho com o retrato.
Quando o rapaz viu que o seu santuário tinha sido profanado, partiu para cima do pai como se fora o seu pior inimigo. Como estava fraco, foi contido mas ainda conseguiu desvencilhar-se, agarrar o porta-retratoe apertá-lo junto ao peito, enrodilhando-se em um pé de parede.

A partir daquele dia foi só piorando, não comia, não bebia, ardia em febre, estava doente de amor. Gritava com quem se acercasse dele, mostrava os dentes ameaçando morder.
Ele amava tanto, tanto que aquele estranho eco chegou aos ouvidos da moça do retrato e ela, convencida de ser sua presença física a cura para o pobre rapaz, pediu permissão aos pais e partiu para o Sertão de Pernambuco.
Três dias depois, quando ela chegou, linda e suave como uma flor do campo, o pai esperava-a na rodoviária. O coração da moça estava aos pulos, as faces em fogo. Apaixonara-se também, assim, de longe?

Pela boca da noite pisaram na soleira da casa. A moça ajeitou os cabelos, suspirou e entrou pelos braços do pai do jovem, qual noiva rumo ao altar.
Quando seus olhos acostumaram-se à penumbra ela viu um rapaz esquálido, desgrenhado e barbudo, deitado em um canto do quarto cochichando e acariciando um retrato. O pai falou alto, alegremente, "filho, aqui está ela, a moça do retrato! Veio lhe conhecer!"

Ele ergueu os olhos fundos, contemplou a jovem e baixou-os novamente para o retrato. Beijou-o apaixonadamente, apertou-o junto ao peito com suas últimas forças e murmurou com um fio de voz suas últimas palavras...

"Boa noite, amor..."
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 25/11/2015
Código do texto: T5460437
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