O Ciclo - Capítulo 1 "Dê Uma Olhada no Espelho"

O velho se levantou. A passos curtos, caminhou lentamente. Seu destino não estava tão longe, porém ele preferiu caminhar devagar. Preferia a morosidade de sua marcha, pois assim podia despedir-se dos arbustos, da grama e das flores, que aos poucos davam lugar ao asfalto rachado. Percebera que algumas nuvens escuras se aproximavam, mas não se apressou; não sentia saudade dos tempos em que podia correr e chegar rapidamente ao seu destino — pelo contrário — ele apreciava a lentidão, pois aprendera a viver assim. Até mesmo aguentaria a mais cruel das tempestades para estender aquele instante tanto quanto pudesse.

As primeiras gotas já começavam a cair quando ele alcançava a metade do caminho; suas pernas estavam doloridas, mas a dor era anestesiada pela satisfação de estar ali. A chuva aumentava, e aos poucos tornava-se uma tempestade. Não haviam trovões, mas apenas água; as gotas picavam sua pele, como espinhos, e por fim, encharcavam-no por completo. Há tempos não sentia esta sensação, e há tempos nem mesmo se pusera a tomar um bom banho. Levantou sua cabeça e percebeu que já estava há poucos metros de seu apartamento, mas antes de entrar, decidiu-se por dar uma última longa olhada para o mundo lá fora; para que só então voltasse à sua velha moradia para viver mais um dia de sua vida medíocre. Abriu a porta, mas não viu ninguém; jamais vira alguém ali. Perguntava-se como era possível estar a viver tão próximo de outras pessoas, mas ao mesmo tempo sentir-se como se fadado a um confinamento solitário. Ele então seguiu o lance de escadas, desta vez caminhando o mais rápido que podia, já que aquele ambiente não lhe agradava. O cheiro do concreto o enojava e não se parecia em nada como o perfume das plantas molhadas pela chuva. Por fim, alcançou o seu aposento, cuja segurança era a responsabilidade de uma simples porta de madeira já mofada, que haveria de ruir pelo menor dos traumas que sofresse. Logo ao entrar, retirou seu casaco, pendurando-o no mancebo e seguiu em direção à sala de estar a fim de trazer luz à toda aquela poeira, assim que fosse capaz de superar mais uma vez o desafio que a fechadura da pequena janela lhe impunha a cada vez que ousava tentar abri-la. Mesmo praticamente desprovido de qualquer tipo de mobília, aquele lugar parecia muito apertado, mesmo para um velho magricela de meia altura. Em meio àquele vazio sufocante havia, no entanto, um elemento que sempre lhe chamava a atenção: ao fim do corredor, repousava um pequeno móvel de madeira que caía aos pedaços, a única coisa que sua mãe havia lhe deixado de material; insignificante frente às boas lembranças. Ele não sabia se gostava de contemplá-lo ou se preferia evitá-lo; algo nele o causava-lhe demasiado incômodo, uma espécie de terror sem nome.

Decidiu, por fim, sair depressa daquele cômodo, no mesmo instante em que as parcas luzes solares que alcançavam aquele ambiente semi-inóspito davam-no alguma graça. Já se dirigia ao banheiro, quando se principiou uma espécie de sensação asfixiante, que também parecia misteriosamente travar-lhe as pernas. Gradativamente, atravessava-se um temor inconsciente para a consciência, relutando para alcançá-la o menos distorcidamente possível após a filtragem de seus já amplamente constituídos e enrigidecidos filtros superegóicos, ao mesmo tempo em que suas já falhas conexões neurais eram capazes de esboçar-lhe alguma vaga ideia do que era aquilo o que sentia: medo. Mas a sensação em si ainda não era o suficiente para lhe precisar a origem daquela inquietação, seria necessário que alguma imagem eidética se relacionasse às manifestações somáticas e que compusesse, por fim, o quadro que a então pouca simbolização que estes pequenos fragmentos de sua memória desagregada lhe impediam de montar.

Abriu a porta apenas o suficiente para espreitar sobre o que havia por detrás, esticando com dificuldade seu braço para alcançar o interruptor. Quando a luz se acendeu, um fervor percorreu o seu corpo, suas pernas bambolearam, sentiu o sangue correr por suas veias e teve a impressão de ouvir o pulsar de seu coração tamborilar em seu peito. Permaneceu do lado de fora, incerto de qual seria seu próximo passo. Uma nova onda de inquietação o atingiu, desta vez impelindo-o a seguir em frente. Aproximou-se com cautela, levando algum tempo para que finalmente tomasse a coragem de alinhar-se com o espelho. Ele então se arrepiou. Algo estava errado: o velho olhou, mas pouco pôde enxergar. Seu corpo estava lá, porém nada havia em seu rosto, a não ser uma esfera, sem conteúdo. Sentiu como se aquela imagem estivesse por drenar a sua energia, como se sugasse a sua alma para o lado de dentro daquele cenário aterrador. Aterrorizado, saltou para trás, escorregou e caiu ao chão.

Ainda acordado, porém imerso em uma espécie de estado de obnubilação da consciência e de sensações nauseantes, espantou-se mais ainda com o que viu em seguida: era a imagem de sua mãe. Olhava-o fixamente, seus olhos brilhavam. Uma aura cintilante parecia contorná-la, tornando-a quase que uma figura imaculada. Ela levantou suas mãos com delicadeza e acariciou o rosto do velho, que firmemente segurou os seus braços.

Não se aguentou.

Lágrimas passaram a cair de seus olhos, primeiro como leves picadas, depois como uma tempestade.

Rafael Gonçalves
Enviado por Rafael Gonçalves em 28/11/2015
Reeditado em 26/12/2017
Código do texto: T5463263
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