Coveiro

Há muitos anos sou Coveiro do cemitério dos Inocentes, em Porto Velho, Rondônia. Hoje teve mais um enterro, coisa rotineira na vida de um coveiro. Mãe e filho estavam sendo enterrados: ela com quase 50 e ele com 24. Era pra ser mais um enterro comum, porém, algo mexeu comigo. Parecia que eu iria ser enterrado também, que a terra que os recobriria também me deixaria a sete palmos. A minha sensação era de que ficaria no escuro também, tanto quanto o jovem defunto e a jovem senhora que a terra estava prestes a abraçar.

A ordem dos fatos em um cemitério é sempre a mesma: cortejo, pessoas chorando, caixões em direção as lápides, rezas de sacerdotes, mais choro, e por último a tampa dos caixões: ao final de tudo, pouco antes de descer os mortos à terra, é preciso fechar os caixões.

Não sou de me emocionar nos enterros, afinal, o tempo matou meus sentimentos, e em cada caixão, um pouco da minha humanidade foi enterrada também. Hoje eu também sou um defunto, tanto quanto os cadáveres. A única diferença é que os vermes ainda não comeram meu corpo, mas no resto, somos idênticos, irmãos de submundo.

Voltando ao cenário, hoje era mais um enterro comum, com a pequena diferença que minha alma se entristeceu, que minhas temperas pulsaram de tristeza, de dor: um desespero afiado como um punhal dilacerava meu coração, não soube explicar.

No momento das preces e rezas, eu chorei involuntariamente. Meu companheiro de trabalho não entendeu, e nem eu, mas eu chorei. As lágrimas mostraram ainda existir na aridez da minha alma.

No momento final, quando o sacerdote encerrou as consolações, no instante de descer o caixão a terra, pediram-me para ajudar com a tampa do caixão, para ajudar a fechar o sarcofágo. Lembra que eu disse que esse é o momento final: pegar a tampa dos caixões e fechá-los? Pois é...naquele instante pude ler o nome que constaria dali em diante naquela lápide: Maria do Rosário Nunes, minha ex-noiva, que me abandonou no altar há mais de duas décadas, quando soube que estava grávida: ela sumiu no meio do mundo. Por uma triste sorte, quis o destino que o nosso reencontro fosse ali, naquele dia maldito. Quis Deus que eu cravejasse de terra os corpos do meu grande amor e do meu filho. Os dois desceram as trevas, e eu desci com eles. Estou lá, enterrado também.

Profano
Enviado por Profano em 09/12/2015
Reeditado em 09/12/2015
Código do texto: T5475368
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