Plim plom!

A música agradável da campainha ecoou pelo apartamento e alcançou o corredor. “Plim, plom, plim, plom!” Voltei a tocá-la, não por impaciência, mas pela melodia que me remetia às caixinhas de música da minha avó, eternos objetos da cobiça das filhas e netas. Se, em menina, cada uma de nós nutria a esperança de ser agraciada com uma daquelas pequenas relíquias, essa esperança se esvaia por completo após debutarmos. Só mais tarde entendi que, como não as possuía em número suficiente para presentear todas as suas meninas, vovó Guiomar evitava eleger uma ou outra predileta, o que, no entanto, não impedia que todas nos sentíssemos um pouco preteridas. Porém, esse ressentimento infantil era coisa há muita superada pela mulher que tocava aquela campainha.

“Plim, plom, plim, plom!” Ele enfim atendeu à porta, seu sorriso sempre fora a melhor das saudações. Enquanto seu perfume amadeirado me acariciava as narinas, com o antebraço direito sobre as minhas costas, ele me puxou para si e me cumprimentou com beijos nas faces. Recuou três passos e estacou a minha frente, mocassim, jeans desbotado, a pele bronzeada a contrastar com a camisa amarelo-bebê. Com as mãos na cintura examinou-me da cabeça aos pés. Comprimiu os lábios, balançou verticalmente a cabeça e deu-me outro sorriso, desta vez de aprovação. Tomou-me pela mão e me conduziu à sala. “Um café, um suco, um chazinho?” Perguntei pelo chá da tia dele. De camomila, ele já sabia. Sumiu em direção à cozinha.

Sozinha na sala, eu inspirava fundo e tentava apreender na memória as nuances da luz vesperal que se derramava por sobre os vasinhos de orquídeas. O apartamento ficava num edifício antigo de apenas três pavimentos, não tinha elevador, porteiro, ou interfone, mas tudo me inebriava no singelo imóvel impregnado pela áurea do proprietário. “Você nem se foi e eu já começo a padecer de saudades...” Sussurrei após um suspiro, justamente quando ele voltava com a bandeja e as xícaras. Não me ouviu. Enquanto eu folheava seus livros sobre arte e apreciava as réplicas das aquarelas de Willian Turner, ele depositou a bandeja sobre a mesinha estilo Luís XV.

“Minha amiga noiva agora vive com a cabeça nas nuvens!” Disse a me caçoar pelo langor aparente. Minha resposta limitou-se a um sorriso acanhado. “Venha, querida, sente-se aqui.” E após dizê-lo, com a palma da mão ele quis expulsar do sofá alguma poeira invisível. Sentei-me. Douglas me ofertou uma das xícaras. Inspirei demoradamente a névoa que pairava sobre o chá antes de sorvê-lo. “Então você vai mesmo para a Austrália, Doug?” Perguntei-lhe com os olhos imersos na xícara. Com o indicador e o médio, ele pressionou meu queixo para cima, com o polegar obrigou-me a girar o pescoço e encará-lo. “Que é isso, Nandinha? – Ninguém mais me chamava assim. – Estou indo pra Camberra, não vou morar com aborígenes!” Completou com tom paternal.

Provavelmente esbocei um sorriso mudo. Eu deveria estar feliz pela oportunidade da vida do meu amigo, mas me comportava como se estivesse prestes a ser privada de um dos sentidos e me senti envergonhada ao constatar que a maior razão daquela tristeza era meu próprio egoísmo. “Não fique assim, será só por um ano, no máximo dois.” Ele minimizava, tentando me consolar. “E o apartamento?” Perguntei, disfarçando a minha angústia. “Oras, fica fechado, a quem eu poderia confiá-lo, além da minha melhor amiga?” Fez uma breve pausa, como se buscasse ele mesmo uma resposta, e também me pareceu amargurado. “Mas você vai se casar.” Ele concluiu sorrindo. Coloquei a xícara sobre a mesa, com os cotovelos sobre os joelhos, abaixei a cabeça e, sem dizer mais nada, enterrei o rosto entre as mãos. Como acontecia naquelas ocasiões, Doug decerto largou sua xícara, cruzou as pernas e, com os braços abertos sobre o encosto do sofá, aguardou-me, assoviando baixinho e olhando para o teto.

O exercício da nossa amizade incluía alguns rituais, como sempre que nos encontrávamos e ele, com as mãos na cintura, avaliava a minha aparência e os meus trajes. Quando tinha alguma novidade ou confissão, eu o visitava sem avisar. Doug era meu melhor amigo, meu confidente, sempre o primeiro a saber. Se a notícia era ruim, ou de fórum íntimo, eu escondia o rosto entre as mãos, como daquela última vez, este era outro dos nossos rituais. Foi assim quando reprovei no vestibular e quando descobri maconha entre as coisas da minha irmã.

“Vamos lá, querida, o que é? Eu soube que havia algo errado tão logo você pediu chá de camomila. Desabafa comigo.” Ele sussurrou enquanto me afagava os cabelos. Não respondi, não sabia como começar. A maioria das mulheres consegue dar vazão, ainda que momentânea, às suas frustrações simplesmente chorando, mas comigo as palavras ficavam entaladas na garganta e as lágrimas nunca vinham. Isso era ainda mais frustrante. Ante meu mutismo, Doug ajoelhou-se aos meus pés e, afastando delicadamente meus pulsos, obrigou-me a mostrar o rosto. Imediatamente debrucei-me sobre ele e o abracei. Quis abandonar minha cabeça para sempre sobre seu ombro e morrer ali, inspirando seu perfume, mas em breve ele estaria partindo.

“Será que o casamento dos sonhos de qualquer moça tornou-se um pesadelo para a moça que nunca sonhou se casar?” Ele me perguntou, já sentado ao meu lado e acolhendo minhas mãos entre as dele. Douglas imaginava que eu temia me comprometer com Emílio apenas porque, como eu lhe contara, Emílio já havia tomado todas as decisões e feito todos os planos. Emílio, o homem que, apesar de aparentemente perfeito, certamente me anularia como mulher. O homem pelo qual minha família demonstrava mais afeto do que por mim mesma. "Mas seriam justas essas conclusões? Seriam verdadeiras?" Doug me incitava a pensar. Não seria por minha própria omissão e conivência que Emílio vinha tomando sozinho todas as decisões? E as projeções de Emílio, pelas quais eu me tornava a mãe dos filhos dele em regime integral, não teriam sido edificadas sobre o meu próprio silêncio? O fato de eu mesma nunca ter expressado qualquer insatisfação com nosso relacionamento não corroboraria para que minha família tivesse por ele tamanho apreço?

Ao ouvi-lo fazer a defesa de Emílio, senti-me ainda mais impotente, Doug sequer desconfiava sobre o que de fato se passava comigo. Recostei minha cabeça em seu peito como uma filha, enquanto ele, com a mão sobre a minha nuca, continuava a murmurar aquelas ponderações em meu ouvido e, pela primeira vez como adulta, eu consegui chorar, um choro histérico, convulsivo, uma onda de soluços e espasmos propagados a partir do ventre. Após alguns minutos, ele me afastou do seu tórax, carinhosamente dispersou minhas lágrimas com os polegares e segurou minhas mãos com mais força. “Você precisa se decidir, minha querida, mas precisa fazê-lo sozinha, nem eu, nem Emílio, nem ninguém deve decidir por você. O único conselho que lhe posso dar é, não pense, não pondere, não tema nem uma coisa nem outra, este é um assunto do coração e apenas ele deve ser ouvido” Doug disse-me com voz firme e tom imperativo. Eu então, como alguém que, apenas para livrar-se da tortura, confessa o crime que não cometeu, assenti com a cabeça e forjei um sorriso tímido, somente para que ele também voltasse a sorrir. Acabei minha xícara de chá e me despedi, ainda mais amargurada por haver traído a mim mesma.

Dois anos depois, eu já não estava com Emílio quando Douglas retornou ao Brasil com o amigo australiano. Veio todo apressado, apenas para assinar os papéis de venda do apartamento e foi onde nos reencontramos. Em seu interior, nem quadros, nem flores, nem a mesinha Luís XV havia mais, mas tão somente o velho sofá e alguns moveis vulgares. Nem a luz do sol, então estranhamente turva, era a mesma. Douglas usava um terno austero, pareceu-me mais magro e elegante, ainda que demasiadamente envelhecido – talvez apenas por conta do parceiro mais jovem. Sorriu-me, mas sequer em seu rosto percebi a luminosidade de outrora, e quando aproximou-se para me abraçar de maneira quase formal, temi sucumbir ao seu perfume – este ainda era o mesmo –, mas reagi como quem recebe os parabéns do chefe sisudo pelo aniversário.

Keith, após sermos apresentados, desceu a pretexto de fumar um cigarro e nos deixou a sós. Contei a Doug sobre o fim do noivado e sobre como estava feliz, enfim morando sozinha e me realizando profissionalmente. Profissionalmente ele também estava bem, mudara-se recentemente para Sidney, adorava a cidade e, posto que ele evitou comentar sobre sua vida pessoal, deduzi que talvez o namoro dele não andasse lá essas coisas. Apesar de Douglas e eu nos esforçarmos e nos sentirmos verdadeiramente felizes pelo reencontro, conversamos sem muito entusiasmo e quando quisemos repetir alguns dos nossos velhos rituais, creio que ambos nos sentimos estranhos, artificiais, como dois atores que, ao encenar a adaptação de uma história real, maculassem memórias sublimes.

Plim plom! Plim plom! Doug, a quem há muito eu havia contado sobre as caixinhas de música, volta a tocar a campainha enquanto eu desço as escadas. Plim plom! Plim plom! Pela derradeira vez as notas doces adentram os meus ouvidos e, ao ressoarem em minha cabeça, afinal acertam meu coração, despertando sentimentos adormecidos, inebriando-me com a nostalgia. Paro, volvo o pescoço. Sob o umbral, como que invocado de um sonho, o mesmo Doug de outrora acena sorrindo. Ao tempo que sua imagem me paralisa, também me incita a subir de volta, como se por aqueles degraus me fosse possível retroceder no tempo. Inspiro fundo e, recobrando-me da vertigem momentânea, decido, apenas para me libertar, revelar-lhe o mal que à época realmente me açoitava. Mas eis que então, antes que eu possa girar nos calcanhares, sou detida pelo jovem Keith que, ascendendo a estreita escada com passos resolutos, esbarra em mim. “Oh! Excuse me, excuse me!” Diz, amparando-me para que não caia. Só então, olhando novamente para cima, percebo que não fora para mim que a campainha tocara.

CirineuCWB
Enviado por CirineuCWB em 10/12/2015
Reeditado em 04/02/2016
Código do texto: T5475665
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