O visitante

Aquele rapazinho tinha o hábito de mirar-se no espelho, em verdade não era hábito, nem mania, nem mesmo sintoma de narcisismo, mas, às vezes, ao olhar-se no espelho ele era capturado, hipnotizado pela própria imagem. Entrava momentaneamente em um tipo de transe e, de repente, a imagem não era mais a dele, mas a de um visitante inusitado, supostamente seu eu futuro. Este eu futuro não lhe falava, mas usava um canal de comunicação diferente, um tipo de conexão telepática, porém falha e ineficiente, para tentar aconselhá-lo e fazer revelações que resultavam sempre muito confusas. A conexão durava pouco, pois a imagem no espelho ia gradualmente escurecendo e, tanto mais sombrio seu reflexo se tornava, mais medo o rapaz sentia e menos inteligível a mensagem lhe parecia. Ele sabia que eram seus próprios medos que causavam os ruídos e dificultavam a comunicação, no entanto, ainda que se esforçasse por suplantar o medo, estas visitas se pareciam sempre com esses sonhos enevoados dos quais pouco ou nada recordamos ao acordar. O tempo passou e, à medida que o jovem amadureceu, as visitas se fizeram mais e mais esparsas, até que o visitante deixou de vir, o rapaz tornou-se homem e simplesmente o esqueceu.

Enquanto isso, neste universo paralelo em relação ao daquele jovem, eu, homem maduro, há tempos também tenho sentido uma presença estranha. Não me é permitido ver a face desse espectro, mas ele ronda a minha casa e, às vezes, pega carona no meu carro. É tímido, acabrunhado, esgueira-se pelos corredores, esconde-se atrás das portas e cortinas, por vezes oculta-se no banco de trás do carro, sem nunca revelar o rosto ou vir a ter comigo. Às vezes penso tratar-se de coisa da minha cabeça, mas não, não estou louco, a presença dele é real e a cada visita ele me parece mais familiar. Não me quer assombrar e é certo que sente mais medo de mim do que eu dele. Parece perdido, aqui não encontra sua casa e, de alguma forma, eu sei que ele não tem lar nesse mundo. Aqui não encontra pai ou mãe e pelos mesmos meios eu também sei que, mesmo quando juntos, eles nunca se encontraram realmente. Por uns tempos a presença desse fantasma me incomodou, sentia-me observado, espionado. Porém a convivência fez com que eu deixasse de vê-lo como um espião para pensar nele apenas como um acompanhante indesejado, porém discreto.

Certo fim de tarde, eu dirigia de volta do trabalho quando senti sua presença no banco de trás. Na solidão populosa do trânsito, decidi finalmente confrontá-lo:

- Quem é você? – Inquiri, com tom autoritário, após desligar o rádio, mas sem virar-me para trás.

Ele continuou quieto, como se não fosse com ele. Como se não pudesse ser com ele porque ele sabia que, mesmo ele não tendo onde se esconder, eu não o poderia ver.

- Responda! Mesmo sem lhe ver, eu sei que você está aí. – Eu disse com autoridade.

- Eu sou você... - Ele murmurou com uma vozinha embargada.

- Não. Não é não! – Protestei firmemente.

- Sou sim. Sou você ontem.

- Ah sim, como naquela antiga propaganda de vodca. - Repliquei ironicamente.

- Mais ou menos.

- Como assim, mais ou menos?

- Se recordo bem, na propaganda o visitante era o cara amanhã. Já eu sou você ontem, ou melhor, ainda mais aquém.

- Ah... Mas não é mesmo!

- Sou sim, pense um pouco. Você deve lembrar-se de quase tudo que eu vivi.

Diante do semáforo fechado, senti-me estranhamente compelido a cerrar os olhos e então um filme de resolução ruim projetou-se em minha mente. Vi momentos entrecortados da vida de um jovem a crescer como essas árvores cuja semente original cai acidentalmente em solo inóspito. Uma infância pobre, perdas, dores, solidão, carência, incompreensão, insegurança, ingenuidade e complexos. Uma sequência de momentos tristes entrecortados por alegrias inocentes e tênues. Cenas de uma vida que eu não reconhecia como minha, nem desejaria a ninguém.

- Veja, eu não sei como me é possível saber essas coisas e lamento por você, mas não reconheço essa estória e... definitivamente, eu não sou você. Enfim, você não é eu, eu não sou você e nem nunca fui!

- Não? E quem você foi então? Como foi seu passado, sua infância e juventude?

O tom do rapazote, apesar do caráter provocador das perguntas, não denotava atrevimento, pelo contrário, a voz tímida e tolhida parecia projetar-se para dentro dele mesmo.

Como durante nossa conversa eu continuava a olhar para a frente, até porque, não me sendo permitido vê-lo, não o poderia encarar, cerrei novamente os olhos – o trânsito congestionado permitia - e fiz um pequeno esforço. Abri os olhos, conferi o tráfego, fechei-os outra vez, fiz um esforço maior. Nada. Eu não me lembrava de nada. Inusitadamente, meu passado tornara-se uma tela em branco. Uma tela exposta, mas que o artista se esquecera de pintar.

- Isto é um sonho, não é?

- Também cogitei essa possibilidade quando, de repente, me vi jogado aqui neste seu mundo. Já tive experiências parecidas com essa, porém foram mais breves e era você quem me visitava no espelho.

- Eu te visitava num espelho? Como assim? - Inquiri desconfiado.

- Você não lembra?

- Não, amigo, como eu me lembraria se nunca lhe visitei em nenhum espelho?

O rapaz só poderia ser mesmo doido e a esta altura eu já nem sabia por que lhe dava trela.

- Talvez... mas você foi visitado quando era eu, ou melhor, quando tinha a minha idade, se você preferir. Às vezes eu me olhava no espelho e de repente você aparecia, ou não aparecia, mas de alguma forma eu sabia que você estava lá. E você ficava sussurrando coisas dentro da minha cabeça. O que é que você queria me dizer?

- Ah! Mais isso! - Como dizem os homossexuais mais afetados, àquela altura eu já estava passado com o garoto. - Você é quem está a me visitar, meu filho! Então, supostamente você é deveria ter algo a me dizer!

- Poxa...

- Poxa o quê?

- Você, digo, eu me tornei um cara estressado.

- Ok, me desculpe, eu não quis ser grosso, porém essa conversa está muito surreal para o meu gosto. - Por alguma razão a decepção na voz dele me envergonhara.

- Para mim também. E sabe o que é mais estranho? Eu também tenho as suas memórias recentes. Eu sei tudo sobre você, sobre o meu eu futuro, ou quase tudo.

- Tá bom... - Obviamente, meu rosto não ocultava o meu descrédito, então também não havia porque modular minha voz.

- Em certas coisas nós continuamos iguais, por exemplo, ainda sentimos vergonha.

- Vergonha? Vergonha de quê? Cara, eu não sinto vergonha de nada. Você não é eu, nem eu sou você. Tem conhecido seu que me encontra e nos confunde. Pensam ter lhe reencontrado. Eles não sabem o quão enganados estão. Desculpe, mas eu não o reconheço. Eu não me reconheço em você. Se algum dia fomos a mesma pessoa, pode ter certeza que há muito não somos mais. - Ao concluir, eu pensava nas contradições que acabara de proferir e torcia para que ele não as tivesse percebido.

- Não precisa se desculpar, eu também não o reconheço por completo. Achei que me tornaria alguém diferente. Não que eu lhe desaprove totalmente, não me entenda mal.

- Não totalmente? - Perguntei irritado. Afinal quem o fedelho achava que era para reprovar-me, ainda que parcialmente?

- É que com o tempo eu esperava poder superar certos complexos...

- Que complexos, meu filho? Pois saiba que eu não gaguejo diante de mulheres bonitas, ou de jovens perfumadas, como por tantas vezes lhe aconteceu. Nem penso que os caras com mais grana são melhores do que eu. Uma dica: na maioria dos casos a grana vem por acaso mesmo, meu caro. Estes caras não passaram pelas mesmas coisas que você e se passassem, provavelmente a maioria deles não teria conseguido o que conseguiram. E mais, na maioria das vezes, as suas escolhas só pesam sobre você mesmo, então não se torture imaginado o que os outros irão pensar. – Ao concluir, questionei-me, para quem eu dizia aqueles conselhos, afinal?

- Obrigado, eu compreendo, mas imagino que apenas saber isso não basta. Pode funcionar para você porque você já viveu tudo isso. E depois, nós dois sabemos que nem tudo o que você acaba de dizer é verdade, você ainda se tortura mais do que gostaria.

Fiquei confuso, ele se exprimia com a autoridade de alguém que realmente conhecesse meus pensamentos, mas como poderia se, exceto talvez por eu mesmo, nenhuma pessoa assim existia? Antes que eu pudesse engendrar alguma explicação, ele continuou:

- Eu não sei.

- Não sabe o quê?

- Como eu posso saber o que você está pensando ou tem pensado.

Pronto, depois daquilo eu afinal comecei a sentir um tipo de medo. Não dele, mas de mim mesmo. Seria a loucura a me possuir? Mas quando ela, a loucura, nos assedia, é comum que a reconheçamos, que resistamos a ela? Na ausência de algum psiquiatra ou maluco recuperado que me pudesse responder, parei no acostamento, desliguei o motor e reclinei-me sobre o volante com esperança de recobrar a sobriedade. De certo, aquilo tudo era resultado do estresse no trabalho, fosse o que fosse, eu obviamente não estava em condições de dirigir.

- Não tenha medo. Parece que dessa vez o visitante sou eu. De repente me vi aqui, no seu tempo, sabendo o que você sabe, ouvindo seus pensamentos, experimentando o que você sente. Eu não sei o que está acontecendo e também estava apavorado no início, mas começamos a conversar e já não me preocupo mais, não sinto mais medo. Então acho que você também não precisa temer.

- E o que você veio fazer aqui? – Perguntei consternado, tentando apegar-me à ideia de que, mais cedo ou mais tarde, aquele devaneio passaria.

- Eu não sei. Não tenho certeza, mas talvez você precisasse retomar o vínculo com o seu passado e eu precisasse de uma prévia sobre o meu futuro. Sei lá. Faz algum sentido para você?

- Não, nenhum...

Silenciei e tentei encontrar a resposta, pois há tempos eu aprendi que para questões interiores sempre posso construir minhas próprias respostas. Na maioria das vezes me basta simplesmente preencher a lacuna com coisas como “não há resposta”, ou “vou ficar bem sem nenhuma resposta” e deixar a vida seguir seu curso. Infelizmente, dessa vez o evento parecia perturbador demais para que minha mente se satisfizesse com uma das minhas respostas habituais.

- Estava me perguntando aqui, como foi que ficamos tão diferentes?

- Eu não ouvi.

- Estava me perguntando aqui, como foi que você e eu ficamos tão diferentes. - Ele repetiu.

- Não. Eu escutei quando você disse a primeira vez, o que não ouvi foi você pensando isso!

- Ah... sei lá. Parece que não lhe foi concedida a capacidade de ler meus pensamentos, só eu leio os seus. – Não, eu não achei justo, mas antes que eu pudesse protestar, ele continuou. - Mas e aí, você que se diz capaz de construir respostas para as próprias perguntas, como acha que ficamos tão diferentes?

- Será que ficamos mesmo? Quer dizer, será que não estive sempre aí, dentro de você, como uma semente que brotou e foi crescendo? De repente eu cresci demais, como o pé de feijão e... cabum! Você se tornou um gigante.

Após dizer tal bobagem, dei-me conta da minha presunção, mas não senti qualquer pudor, ao contrário, emiti uma gargalhada nervosa.

- Credo!

- Credo o quê? Você não reconhece a evolução aqui? - Perguntei-lhe em tom jocoso, prevenindo-me contra uma eventual censura.

- Não. Quis dizer, credo, como você realmente tem resposta para tudo.

- É, talvez, mas nem eu, nem você, sabemos responder o que você veio fazer aqui...

E foi só isso, ele se calou e eu também me calei. Acordei assustado, minha cabeça doía. Eu havia literalmente dormido na direção e o volante do carro não se revelara um bom travesseiro. Felizmente tivera o bom senso de estacionar antes. Olhei através dos vidros tentando me localizar, apesar de já não haver sequer resquícios da luz do dia, as luminárias no alto dos postes pareciam todas queimadas ou quebradas. A escolha daquele local para estacionar não fora das mais sensatas. Estapeei levemente as faces certificando de me recobrar totalmente. Chequei as horas, eu não estava muito fora do meu cronograma diário, o que indicava que eu não havia dormido muito. Inspecionei os bancos traseiros. Nada. De verdade, eu nunca o vira, mas saberia se ele ainda estivesse lá.

Girei a chave e detive-me por instantes deliciando-me com o som do motor. Pisei na embreagem. Engatei a marcha. Olhei o retrovisor. Soltei o pé, pressionei o outro. Sorri. Eu dirigira pouquíssimas vezes, tinha quase nenhuma experiência. Era um belo carro, as roupas também eram bacanas, o relógio e os sapatos caros. Um bom emprego, uma família bonita esperando em casa. Apesar da calvície e do sobrepeso, o que se poderia verdadeiramente lamentar? Abaixei os vidros e um vento tépido inflou o console. Sorri para aquele rosto estranho no retrovisor e descartei a pergunta, afinal, minha visita deveria inspirar respostas.

CirineuCWB
Enviado por CirineuCWB em 14/12/2015
Reeditado em 07/02/2016
Código do texto: T5479862
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