O Novo Quinze

 
A barra vermelha no horizonte anunciava a chegada de um novo dia.
O Sol, cumprindo o seu propósito, estendia os olhos dourados sobre a caatinga hirta, seca como o coração da sertaneja.
Ela não tinha mais prazer na vida. Passara de uma calma estóica a uma agonia crescente que lhe confrangia o peito e fazia com que desejasse urrar como um animal ferido, debater-se no chão, arranhar o rosto e arrancar os olhos.
Mas o sofrimento era para dentro. O semblante não apontava o menor sinal de desespero.
Deitada na rede ela deixava o pensamento voar mais longe que o infinito até chegar a hora de levantar-se, tomar o café e buscar uns caminhos d'água no chafariz. Ao pé da parede o pirrote ainda exalava o cheiro suave de mel e o retrato do amado olhava-a com olhos doces, a pintinha escondida sob a pálpebra inferior que desenhava uma linha decrescente rumo aos cantos dos olhos. Perto do retrato, um toco de vela apagado e um livro grosso do seu escritor favorito.

Mudara-se para o Sertão Central por opção. A vida na Capital não a seduzia. Não era dada a festas, cinema ou entretenimentos do tipo. Gostava de bibliotecas, museus, uns poucos concertos. O que a atraía era o sublime da natureza feroz e quando a prefeitura daquela cidade abriu vagas para professores ela resolveu partir a ensinar adultos. As aulas eram à noite em uma sala do centro comunitário e ela, embora graduada em universidade de prestígio, pouco caso fazia do ordenado modesto.
A vida para ela não tinha mais sentido. Aliás nunca tivera. Crescer fora uma sequência de desilusões, perdas, um arrastar-se pelos caminhos da existência como a assombração que, assim contavam os mais velhos, implorava por um gole d'água e um punhado de farinha durante a seca do Quinze. Devia de ser uma coisa medonha de se ver, um idoso descarnado, com uma criança nas costas, rastejando na estrada.
Ah! que tempos nefastos aqueles. Nas aulas de História ficara sabendo dos horrores da seca, dos campos de concentração, dos pais que, tresvariados pela fome, comiam os próprios filhos.
Agora não era tão diferente. 2015, o novo Quinze. O clima, uma fornalha, o vento quando vinha soprava quente, nenhuma esperança em forma de lagoa ao redor da Lua. A terra crestada. Os animais morrendo de sede.
Mas o Ceará mudara um pouco naqueles cem anos. Agora havia as políticas sociais, o sertanejo recebia do governo federal uma ajudinha que dava pelo menos para comprar a água de beber, já que a fornecida pelos carros-pipa era grossa.
A professora lembrava-se de quando era pequena, o pai trabalhando nas Frentes de Emergência, a mãe cozinhando o feijão das Bolsas de um dia para o outro, tão duro que era.
E havia as invasões. Certa manhã, voltando de comprar o pão, vira um grupo de homens carregando sacos, liderados por um idoso de semblante digno e resoluto. Iam invadir algum mercado da cidade.
A seca sempre assombrara o homem do sertão. Esperava-se a chuva até o dia 19 de março, a última esperança de haver inverno.
Sertão.
Refletia sobre a frase do escritor mineiro: "Sertão é dentro da gente." Era mesmo. Por onde andava, em qualquer situação, levava aquela lonjura nos olhos, aquela aridez no espírito que fazia, a quem a visse, pensar em grandes pedras silenciosas. Onde era para existir um rio havia um caminho de terra, serpenteando pelas paragens daquele coração de moça que nascera para o seco e a desolação.
Os passarinhos já cantavam no pé de oiticica quando ela levantou-se, prendeu os longos cabelos negros em um coque, lavou o rosto e pegou a rodia para ir buscar água. A lata, embora seca já era pesada mas ela era jovem e forte. O corpo resistia bravamente à estiagem do espírito e negava-se veementemente a desistir.
Seus olhos avistaram, pendendo do armador, uma corda. Seria tão fácil, fazer o laço em volta do pescoço e resvalar. Abrir mão daquela carga a que chamavam vida.
Lembrou-se de que não tomara café. Pegou dois paus de lenha, tirou algumas flepas com a foice e acendeu o fogo com querosene. Pendurou a lata em um arame pouco acima da boca do fogão, assoprou, o fogo pegou e ela sentou-se em um tamborete. Tinha torrado e pilado os grãos de café no dia anterior, o caco ainda estava de molho.
Depois de pronto o café, tomou uma xícara, encostou a porta de cima e saiu, o cão de guarda, seu protetor, seguindo-a de perto.
À sua frente a estrada de terra alongava-se reta. Um vaqueiro velho, chapéu de palha surrado, tangia umas reses magras em direção ao buraco lodoso onde um açude agonizava.
Do pé de Pau-Branco, uma fogo-pagou entoou seu canto que deixava-a ainda mais triste por lembrar-se de eventos do passado.
Era preciso ir em frente. Avançar. Deixar as dores de outrora enterradas nos confins da memória.
Caminhou. Como sua mãe. Como sua avó, sua bisavó e sua tetravó que viera das terras distantes de Portugal.
 
 

 
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 27/12/2015
Reeditado em 10/07/2016
Código do texto: T5492516
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.