Vermelho
 


No espelho, um rosto suave, triste, contemplava o nada.
Tudo nela era delicado, suas mãos, seu sorriso, sua voz.
Usava os cabelos presos em um coque por um pente antigo, um adereço que moças da sua idade não usariam. Claro que não. Moças estavam sempre lindas, os cabelos soltos, escovados, atraindo olhares.
Não tirava os brincos de brilhante. Sentia-se incompleta sem eles. A maquiagem era sóbria, os vestidos clássicos, nem longos nem curtos. Ela era sempre assim.
Quase sempre. Porque às vezes ela adormecia. Deitava-se na relva fresca e aspirava em sua volta o perfume dos campos floridos, imensos, a perder de vista. Havia água? Sim, havia, um riacho cristalino cantava ao longe. Pequenos pássaros gorgeavam, brincavam, bicavam as frutas maduras das árvores. Ela sorria e sentia-se feliz mas dentro de si uma tristeza mórbida rastejava suplicante porém ela estava cansada de buscar respostas.
 
Sobre a penteadeira repousavam os brincos de brilhante, o pente e os óculos. Ela não precisava ver tão bem. Guiava-se pelos instintos, pelos cheiros. Os cabelos cacheados roçavam-lhe as costas nuas, despertando arrepios de prazer.
Ah! a noite... a brisa que soprava do Mar... a liberdade...
O vestido leve, sem nada por baixo. Só um fetiche secreto, uma liga vermelha na coxa direita.
A lua minguante cintilava no céu sem nuvens como uma meia-aliança. Era linda demais. A vida era linda demais.
Passeava pelo centro da cidade. Deitava-se nos bancos do Passeio Público, mergulhava nas águas mornas da Praia de Iracema.
E havia os namorados. Não fazia diferença se eram rapazes, senhores, moradores de rua ou turistas. Ela sorria, eles se aproximavam. Ofereciam cigarro, bebidas, drogas.
"Não, obrigada", ela dizia com um sorriso encantador. Talvez mais tarde. Por enquanto gostaria de passear na orla, de mãos dadas e dedos entrelaçados com o seu namorado.
Eles aceitavam sorrindo desempenhar por uns momentos o papel de cavalheiro e assim caminhavam pela areia da praia, eles falando e ela sorrindo, dando respostas vagas. Seus olhos brilhavam. Ela estava feliz mas por que eles tinham que quebrar o encanto?
Sempre faziam isso.
Chegando a um recanto mais deserto e escuro eles queriam mais. Envolviam-na pela cintura e diziam ao seu ouvido palavras que um cavalheiro não diria a uma dama desconhecida. Que pena.
"Sim", ela dizia sorrindo, “mas antes que tal darmos um mergulho?”
Eles se animavam, tiravam a roupa, entravam com ela no Mar e, em meio a risos e brincadeiras, ela pegava o pequeno punhal preso à liga vermelha e atingia-os nas costas, no pescoço, na barriga. As águas tingiam-se de vermelho enquanto ela nadava arrastando o corpo à profundidade onde o Mar os devolveria em um local distante, sem roupas, sem documentos, cadáveres desconhecidos.
Depois ela voltava à praia. Deixava o vento secar seu vestido, sacava dinheiro do caixa eletrônico e pegava um táxi que a deixava a três quarteirões do seu apartamento.
No dia seguinte ela despertava serena, no pensamento a lembrança do sonho bom com as flores do campo e nos cabelos um cheiro gostoso de maresia.
 
 
 
 

 
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 05/01/2016
Reeditado em 10/07/2016
Código do texto: T5501228
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