O tamanquinho branco

Um tamanquinho branco enfeitava os pés da filha da empregada.Era novo, moda na cidade naquele verão.

Várias bancas na feira hippie exibiam tamancos de todos os gostos e preços. Certamente mais caros que aquele tamanquinho branco comprado à prestação na loja Beira Mar. Vendia-se tudo por lá. De roupas a artigos de pesca.

Os pés da menina assim como toda a sua pele era moreno. Um tanto encardido da terra preta do antigo bairro da Passagem. Chamava-se Passagem por ser uma rota do comércio ilegal de Pau – Brasil, depois o comércio de escravos negros. Não era uma terra muito boa, volta e meia as águas da maré invadiam o lugar. Era o mover das luas.

A produção do sal, extraído da salina do alemão Lindemberg, escoava-se da Perynas ecoava pela lagoa de Araruama até o porto em Arraial. Bem longe da fantasia da Boca da Barra.

O Forte de São Mateus vigia a praia e menina vigia o forte. No baixo salto de seu tamanquinho branco corria pelas areias da praia em direção a pequena ponte que levava à fortificação. Escondia-se numa das guaritas e observava o mar.

Uma caravela sem altas velas vinha ao longe. Cruzava a boca da barra. A menina corria, feito índio Tamoio, de volta a praia. O largo short de algodãozinho e a pequena blusa de malha ,resquício das últimas eleições, ganhavam vida em acenos não atendidos para que a caravela ali aportasse.

O barco carregado de peixes e redes dobrava a boca da barra rumo ao cais.

Perdida a embarcação no horizonte, retornava a menina ao Forte com olhos no mar.

A Passagem recolheu o negro forro e mais tarde os imigrantes portugueses vindos de Aveiro.Recolheu o povo vindo com Américo Vespúcio. A menina gostava do nome, Vespúcio. Gostava do nome do avô ,Esmeraldino. Gostava do nome do bisavô , Mestre Vinvin.

O Forte de São Mateus fora erguido quando se destruiu a Fortaleza de Santo Inácio.

A menina se chamava Helena. Helena de Cabo Frio.

Franciscanos e Beneditinos abençoaram com sangue a terra de Helena.Dentro daquela lógica, ainda sem entender se era amor ou cobiça, ela apenas corria pelas areias brancas da praia da Barra, na doce inocência de ver mais uma vez acontecer a história todos os dias imaginada.

A filha da empregada sabia ler. Tinha seus 7 anos e aprendera sozinha com as revistinhas do filho da patroa: Tintim, o repórter e o seu cãozinho Milu, Cruzadas Picolé, Zé Carioca e a preferida Tininha. No início eram figuras de livros velhos e rasgados.Perguntando daqui e dali, enxotada aqui e ali, mas ouvindo e guardando até ir juntando pedaços de histórias, esmiuçando desenhos até formar letras e com elas palavras.

Leu na penumbra de uma sala da escola a história das caravelas. Seu avô era português, sua avó filha de um negro forro, um negro cafuzo. Raça bonita. Misturada.Amalgamada na areia e no vento daquela praia.Não podia se sentir mais feliz de que ser a cabo-friense, Helena.

O tamanquinho branco era sua jóia além da coleção de conchinhas. O brilho madrepérola de algumas conchas, pedaços de moluscos abandonados pela extinção da vida encantavam os olhos da pequena.Por horas expunha diante de si o tesouro, sentada à beira da calçada enquanto a mãe lavava uma varanda ou limpava uma janela.Da visão multicolorida das conchas um reino de encantamento e distante se materializava.

Seu Walter era patrão da mãe de Helena. Paulista, engenheiro, devia ter uns 50 anos de idade ou mais. Trouxera para conhecer Cabo Frio outros amigos da empresa em que trabalhava. Helena ia sempre ao apartamento que ficava fechado durante grande parte do ano, mas no verão toda a família de seu Walter estava por lá. Isto significava muitas revistas e poucas idas à Praia da Barra.

Numa dessas idas ao apartamento soube a verdadeira história do tamanquinho branco. Seu Walter gratificara a empregada por um adicional.Fora um bom patrão e não voltaria mais no próximo verão.

A empregada não pensou em si, mas na menina, que até então tinha o tênis da escola como único calçado. Presente do natal.

Seu Walter levou Helena para passear. Seu amigo, recém chegado à cidade trazia a filha da mesma idade. Pensou em levar Helena para brincar.

Apesar de estar longe das revistas do Tintim, Helena pensou em andar de carro, passar em frente à praia e sentir o vento mais forte no rosto. Olhar o parque de diversões que todo ano era montado na Praia.

Os tios de Helena trabalharam na montagem do parque. Eram ainda rapazotes e como pagamento receberam ingressos de cortesia para a inauguração. A meninada do bairro não perdia a chance de ajudar, pois era a garantia de ingressos grátis.

O que Helena mais gostava era a roda gigante.Vó Diversa dividia os ingressos, mas Helena com aquele sorriso faceiro e alegria por todo lado, sempre conseguia mais que os outros. Foi com os tios a inauguração do parque de diverções. Grudada no tamanquinho branco, colocou seu vestido de malha vermelho e listas brancas que tinha uma florzinha também vermelha com cabinhos verdes na pala, presente do padrinho no natal.

Os pés bem limpos, lavados e escovados. O tamanquinho também. O cabelo preto, crespo e grosso, preso com um par de tranças que tornavam aquele rosto infantil mais sapeca.Este teria sido o melhor dia daquele verão se não fosse seu Walter e aquela menina rica.

Entraram na Brasília do seu Walter. Um carro bonito. Com as janelas bem grandes.Ele passou pela praia só para Helena ver o parque e o Forte São Mateus.Não havia quem não soubesse da fascinação das águas da Praia da Barra sobre a menina.Além de que o verão sempre enche os corações de uma esperança nova, uma coisa boa flui nas manhãs mornas de Cabo Frio.

As meninas logo se entenderam. De tamanquinho para tamanquinho. Não era a filha da empregada e a menina rica, mas dois espíritos afins. As duas logo riram de seus tamanquinhos, plac, plac, no chão de mármore da casa alugada para veraneio. Corria solta aquela manhã até a fatídica hora do almoço.

A filha da empregada sentada a mesa da família ,por força da menina rica, que a pôs a seu lado. Helena não sabe como conseguiu comer o arroz que lhe descia rasgando a garganta de tanta vergonha daquela senhora linda sentada a sua frente e que a olhava como se fosse um objeto estranho. Não havia necessidade de palavras. Amenizava o desconforto de Helena o olhar meigo e amigo da menina rica e desafiador ao mesmo tempo. A amizade das meninas foi além das fronteiras do preconceito naquela manhã.

Felicidade quando por findo deu-se a refeição. Saiu da mesa como um cãozinho atrás da nova amiga, que alheia ao contragosto materno, puxava pelas mãos Helena. Logo a fome se fazia sentir, assim como a leveza de estar fora dos olhares daquela mãe. Helena ficara pensativa como tanta beleza habitava em conjunto com um olhar que machucava e causava um desconforto sem causa. O que ela havia feito de errado à mesa? Foi uma pergunta que a acompanhou por um longo tempo, até entender, algum tempo depois, que era o fato de ser a filha da empregada.

Os tamanquinhos começaram a correria na varanda e devem ter incomodado. Como do nada a aparição da Dona bonita com o rosto vermelho de ódio surge à porta. Chama a filha para junto de si com uma delicadeza contida e ralha com rigor com Helena:

_ Menina mal educada!Ponha-se no seu lugar!Não tem vergonha?Não sabe quem você é?

As meninas, cada uma a seu modo,procura entender o que estava acontecendo. A amiga entra em defesa da outra:

_Estamos só brincando, mãe. O meu tamanco também faz barulho.

A defesa foi estopim da fúria contida por toda a manhã. Num safanão a menina rica estava dentro da casa sob o cuidado da babá. Uma mocinha negra e que sorrateira exibia pelo canto da boca um sorriso zombeteiro contra Helena enquanto alisava os cabelos loiros da menina rica ensaiando um consolo.

A filha da empregada se viu em meio à um turbilhão confuso , sem conseguir organizar as idéias e lágrimas caíam grossas num choro gemido.Não compreendia o havia feito de tão mal. Acuou-se a um canto da varanda, sozinha.Ficou lá um bom tempo até a chegada de Seu Walter.

Ainda ouviu aquela mulher bonita gritar com a menina rica.A porta se fechou.Do canto da varanda um silêncio veio se entranhando na alma de Helena. Ela ouviu o mar se quebrando e o riso dos pescadores, embora estivesse longe da Praia da Barra ,exposta como um bicho de zoológico atrás das grades do portão daquela casa. Pessoas passavam e olhavam a criança a um canto chorando.Seguiam seu caminho.

O mar, a caravela, o marinheiro... Helena dormiu ali no chão frio de mármore.

A menina rica também dormiu depois de chorar como Helena.

Seu Walter chegou com seu amigo e viu a menina dormindo com um sorriso nos lábios. O sorriso dos inocentes, dos que sonham.Observou, no entanto que a poeira havia deixado o rastro das lágrimas no rosto infantil.

Acordou Helena com um carinho. Pegou a menina no colo e fez uma festa como se achasse uma princesa adormecida.Deu-lhe um beijo e fez cócegas.Em troca daquele carinho um abraço de braços pequenos envolveu o pescoço do velho.Nada perguntou.Também na casa não mais entrou.Helena viu Seu Walter se despedir do amigo ali mesmo, na varanda, com ela no colo.

A menina rica ouviu a chegada do pai. Saiu correndo de dentro da casa e abraçou Helena.Os tamanquinhos fizeram novo barulho. Um correndo de dentro da casa e outro saltando feliz do colo de Seu Walter.As duas de mãos dadas ficaram. O velho paulista, deve ter entendido o que havia acontecido. Coloca as meninas no colo e diz ao amigo:

_Voltamos já. Um sorriso se abriu na face dos dois homens.

Com a mãozinha, Helena limpava o rosto.Não se continha de tanta alegria.

Seu Walter as colocou no carro e foram ao parque de diversões. Estava fechado àquela hora.Helena não sabe como, mas o parque era só delas.No carrossel colorido imaginou a amiga uma princesinha da corte portuguesa. Ela própria, uma guerreira da tribo dos Tamoios.Do alto da roda gigante, as duas se acharam próximas de Jesus e Maria. Queriam ir mais alto e tocar as nuvens e ver se realmente eram de algodão doce.Uma de cada lado de Seu Walter embarcaram no trem fantasma. Foram no carrinho bate-bate e no pula-pula.

A menina rica foi deixada em casa, agora mais feliz! Helena pensou que iria para casa, onde morava com sua mãe, seus tios e seus avós. Seu Walter tinha, mais uma surpresa: a levou na casa Irmãos Muniz,uma loja grande de brinquedos e eletrodomésticos.

_Helena, escolhe a boneca que você quer.

Parecia um sonho! Ouvir aquelas palavras. Helena ficou tonta e pensou que fosse a fome, por não ter almoçado.Segurou a mão de Seu Walter e ficou sem fala. Eram tantas bonecas. Umas grandes quase de seu tamanho, outras como bebês, mas o sonho de Helena era a Susy. A Susy de noiva.

_ Posso mesmo? Qualquer uma, Seu Walter?

A cabeça do velho acenou com um sim.

Helena correu em direção as Susy`s. Pegou aquela, vestida de noiva.

A filha da empregada voltou para casa com a boneca mais bonita que poderia ter tido durante toda a sua vida. No caminho de volta, pararam para comer na Branca, uma lanchonete de doces finos mais bonita da cidade. Aquela menininha de tamanquinho branco e pés encardidos, rosto suado e sujo, deixou-se pintar por um radiante olhar que mal cabia diante da fatia de bolo de chocolate a sua frente.

Era um dia mágico, pensava Helena.

Seu Walter foi embora e ela nunca mais o viu. Não soube notícias da menina rica.Por muito tempo a Susy foi uma companheira inseparável que corria com ela pelas areias da Praia da Barra.As idas ao Forte São Mateus foram escasseando com o adeus do verão.O parque também foi desarmado. Seus tios ajudaram.Helena ficou lá, no arrumação dos brinquedos do parque,vendo e revivendo aquele dia especial.Os ajudantes ganharam pão com mortadela e um dinheirinho.O tio de Helena deu para ela um tamanquinho novo. Este era rosa, bem parecido com o da menina rica.Será que eles sabiam?

Helena guardou as boas memórias daquele dia. Achou que Seu Walter era um anjo e um voltaria quando ela estivesse muito triste. Mostrava a boneca para a avó e contava sobre o parque, aberto só para ela e a amiga. Os verões se passaram.O anjo talvez tenha viajado para ajudar outras crianças, pensava a menina, afinal ela ainda estava tão feliz na sua fortaleza.Todo aquele mar azul... Só dela! E os tesouros? Seu tio se tornou um pescador de traineira e lhe trazia riquezas inimagináveis: uma estrela do mar, uma concha tão grande que tinha o mar dentro dela, ouriços...

O tamanquinho branco ficou para usar em casa, ganhara um novo. O rosa era de sair. Helena tinha muitos motivos para se sentir uma menina de sorte e entre eles tinha dois tamanquinhos, um mais bonito que outro.