O Lobisomem

 

 
O Sertão Nordestino é terra constantemente castigada pela seca. Sofre homem, sofre bicho, sofre a Natureza que se obriga a viver no limite de suas forças até que venha a próxima época de chuvas, livrando-a da estiagem que, por vezes, se estende por anos.
A seca mais famosa de nossa região foi a de 1915 devido ao romance de Rachel de Queiroz mas, além desta, houve outras e piores. Nos anos de 1723 a 1727, por exemplo, além da estiagem a peste assolou uma grande região ceifando a vida dos mais frágeis, a saber, crianças, pobres e escravos. De 1979 a 1985, a longa estiagem deixou um rastro de miséria e fome. No período, três milhões e meio de pessoas morreram, a maioria crianças vítimas da desnutrição. E outras houve, outras haverão porque não é do interesse dos políticos que o Sertão cresça e se desenvolva. Mas vamos à história.
 
Contam que havia em certa cidade uma mulher de nome Isolda, mãe de quatro crianças e largada do marido. Ela não era exatamente bela no sentido estético mas tinha uma altivez, uma dignidade que impunha respeito não obstante as roupas remendadas, a falta de banho, o sofrimento de não ter o que dar de comer aos filhos porque mãe é assim, passa fome mas se dá por satisfeita em ver os filhos de barriga cheia.
Onde há sofrimento a solidariedade alcança, isso é indubitável. O homem sensível se compadece da dor do próximo e busca meios de amenizar o mal. Os habitantes das terras abençoadas pela fartura mandavam mantimentos para o povo do Sertão, feijão, arroz, leite em pó, macarrão e o governo, para posar de bom, inventava obras públicas superfaturadas para os homens trabalharem em troca do que lhes fora dado de graça.
Isolda e outras amigas se alistaram nas frentes de emergência. Deixavam as crianças sob os cuidados das filhas moças e pegavam no pesado com a disposição de homens. Ao decorrer dos trabalhos a milícia ficava de guarda e foi assim que o General botou os olhos em cima dela. Tentava puxar assunto mas ela não lhe dava confiança, sempre labutando, séria, calada.
O General ficou indignado. Como era que uma sertaneja sem eira nem beira, largada do marido e com quatro filhos pequenos se atrevia a não ceder aos seus caprichos? Com o orgulho ferido, inventou uma história de que Isolda estaria muito descansada e a demitiu dos trabalhos.
Ela ficou perplexa mas não disse palavra. Depôs os instrumentos de trabalho e foi para casa. Naquela noite as crianças só não dormiram sem jantar porque uma sua comadre repartiu com a pequena família o pouco baião de dois que tinha.
Dia seguinte, muito cedo, chegaram dois soldados com um saco de mantimentos feito especialmente para ela pelo General. Além dos itens básicos havia açúcar, carne, doce, queijo e brinquedos para as crianças.
Isolda só fez mandar os soldados voltarem no mesmo rastro. Não carecia de esmolas do General.
No outro dia os soldados, orientados pelo General, usaram de outra tática; chegaram na hora em que as crianças brincavam sozinhas no terreiro, distribuíram os brinquedos, os doces, os pães de mel.
Quando Isolda viu aquela arrumação ralhou com os filhos, mandou que devolvessem tudo. Foi quando os pequenos começaram a chorar, estendendo as mãozinhas e dizendo que estavam com fome, muita fome.
O coração de mãe falou mais alto. Ela engoliu o orgulho, a dignidade, a humilhação sofrida no trabalho. Aceitou o saco de alimentos e recebeu das mãos dos soldados um pacote e um envelope.
Quando foi de noite ela se vestiu as roupas velhas que o marido deixara ao fugir, calçou os sapatos dele como se homem fosse, botou na cabeça um velho chapéu de palha, cobriu o rosto com um lenço e foi por dentro dos matos rumo ao acampamento dos soldados, ao encontro do General. Antes do galo cantar, retornou pelo mesmo caminho levando ademais latas de leite fresco para os pequenos.
E assim sucederam-se muitas noites. No ínterim começou a se espalhar o boato de que um lobisomem andava a correr por aquelas paragens. Os cachorros, enlouquecidos, latiam presos aos pés de algaroba e as mulheres rezavam assombradas dentro de casa. Os homens então decidiram soltar os cães para que pegassem a fera e na primeira oportunidade eles avançaram com garras e dentes, só soltaram a criatura quando ela não mais se mexeu.
 
No dia seguinte, quando os homens foram olhar, no lugar de um lobisomem encontraram Isolda morta. Sob as roupas esfarrapadas ela vestia delicada camisola de pura seda, uma linda combinação azul e finas meias rendadas nas pernas ensanguentadas.
 
 
 
 
 

 
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 12/01/2016
Reeditado em 10/07/2016
Código do texto: T5508728
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