Os Dias Cinzentos de Clarice

Após a tempestade destruidora de casas e plantações, havia quase uma semana que o céu continuava nublado. Embora a chuva tivesse cessado, os dias sombrios permaneciam com o mesmo tom acinzentado. Acostumada com o sol e seus dias claros e vívidos, mesmo que não houvesse chuva em si, a religiosa Clarice temia por climas densos de tal forma que nem saia para fora de seu lar. Ela mantinha a distante e solitária casa toda trancada e cheia de cortinas, e sabia que o dia ainda estava cinza através da única e fina rachadura de uma parede que dava vista para o alto. Sozinha e sem ter o que fazer, além de orar e suplicar para que Deus enviasse literalmente luz, a senhora temia por uma outra tempestade avassaladora, mas desta vez, com o medo maior de levar consigo sua casa de tijolos velhos, a qual por algum milagre havia resistido, mas tinha certeza que não suportaria a uma próxima.

A fobia de Clarice era tão nítida quanto o dia cinza lá fora, talvez em seu inconsciente soubesse que o medo irracional de dias nublados e chuvosos estivesse ligado a um trauma do passado. Quando ainda criança, uma súbita e violenta tempestade acabou por matar seus pais, que juntos deram suas vidas para cobrir e proteger a frágil Clarice de um teto que despencara sobre eles, salvando a inocente de ser atingida.

Por opção, a mulher decidiu viver só, não queria saber de filhos nem homens em sua vida, vivia uma vida simples do salário mínimo da sua aposentadoria por invalidez. Típica evangélica rígida, daquelas que só usam vestidos longos e não utiliza nenhum tipo de meios de comunicação dentro de casa, a rotina de Clarice se resumia em ir a igreja, cuidar da casa, dos gatos e de sua horta. No entanto, depois do último desastre natural nunca visto antes, a mulher sentiu na pele como era prejudicial ficar sem telefone, rádio ou TV, e resolveu pensar nos conceitos e na sigilosa possibilidade de ter ao menos um desses meios qual sua igreja repugnava. "Afinal, é melhor estar informada e preparada, ater que ser pega de surpresa por algum desastre e correr riscos de vida" - pensava ela.

Já se passavam uma semana que Clarice não fazia contato com ninguém, sua casa era situada na zona rural onde uma outra moradia mais próxima levava muitos metros para se chegar, e além de estar sem ir a igreja, os mantimentos da casa e dos gatos haviam acabado. A senhora necessitava com urgência se deslocar de sua residência para a cidade, e mesmo que o medo do tempo fosse mais forte, ela tomou consciência que o melhor a se fazer seria enfrentando o denso e amedrontador clima antes que viesse de fato a tempestade e piorasse imensamente as circunstâncias. Sendo assim, depois de pedir coragem em mais uma de suas fortes orações, Clarice deu mais uma bisbilhotada pela fresta, e apesar dos pássaros anunciarem um céu limpo e belo devido os cantos empolgados, a mulher acabou se deparando de novo com o mesmo lençol de nuvens cinza cobrindo a imensidão azul do céu. Sem ter muito o que fazer, Clarice não tinha escolha além de abrir a porta e enfrentar seus medos. Temendo pelo o que pudesse vir acontecer, a mulher se aproximou da porta e a destrancou, com as mãos trêmulas segurou na maçaneta, suspirou fundo, hesitou um momento e abriu de uma só vez a porta da sala. Clarice sabia que teria que enfrentar uma boa caminhada até a cidade debaixo do terrível tempo de chuva, e ao abrir os olhos e se deparar com uma forte claridade dando boas vindas em seu rosto, ela foi surpreendida com um belo dia ensolarado e sem nenhuma nuvem borrando o estonteante céu azul. A princípio ela não compreendeu então o que seria aquele céu nublado que estava vendo o tempo todo. Voltou para dentro de casa e deu mais uma checada pela rachadura da parede velha, mas ainda assim viu um céu cinza escuro. À vista disso, para acabar de uma vez por todas com aquele mistério, a religiosa senhora resolveu abrir uma janela que pareava com o mesmo rumo da fresta, para ver o que tanto lhe enganara. A surpresa novamente se fez presente ao perceber e lembrar da recente caixa d'água de cor cinza que havia comprado. Tudo fazia sentido. Pela fina rachadura, a caixa d'água cobria toda a visão do lado de fora, dando a impressão de estar sempre vendo um imenso céu nublado. Boquiaberta, Clarice não acreditou no que tinha acontecido e firmemente decidiu se prevenir mais, a caminho da cidade, debaixo de radiantes raios solares, novos planos a senhora tinha em mente, entre eles, providenciar uma televisão para se atualizar no canal do tempo, entretanto, não antes de terminar de pagar a última prestação da caixa d'água de cor cinza.

"Nem sempre a vida é um céu azul límpido, já que dias cinzentos são inevitáveis. Mas muitas vezes, as tempestades somos nós mesmos quem criamos." - Daniel Dias

Dan Will
Enviado por Dan Will em 18/01/2016
Reeditado em 05/02/2019
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