O segundo jequitibá

Passos apressados às costas, piadas, risos. Augusto? Felícia? Não está seguro de reconhecer todas as vozes que dele se despedem. Talvez, se por instantes tirasse os olhos do monitor, se ao menos se virasse e adicionasse um sorriso ao grunhido ininteligível com o qual os responde coletivamente, mal abrindo a boca. Em minutos os colegas tomam as ruas, mais alguns números no trânsito insano, porém seguem aliviados, desplugados da máquina corporativa. Em minutos, nem vozes, nem teclados, nenhum som de copiadora ou máquina de picar papel, de repente, como num ato de ilusionismo, até os telefones emudecem. Mário ergue os olhos da papelada, perscruta o mar de escrivaninhas a sua frente, restam apenas ele e, metros adiante, outro náufrago, provavelmente um técnico contábil absorto por um balancete de fim de mês. Através das vidraças, o sol já baixo. Pousa os olhos de volta à mesa, tem finalmente a oportunidade de terminar aquele relatório há tanto cobrado pela diretoria.

Relatório concluído, quando por fim os olhos emergem da tela. Através das janelas, o céu agora habitado por umas poucas estrelas, a lua pálida irradia nostalgia. Imune ao cansaço, ele lentamente alinha as ideias, avalia o dia e se põe a divagar. Depois de inventado o dinheiro, o homem criou este sistema sob cuja perspectiva ninguém nasce realmente pobre, todos têm tempo, o tempo das próprias vidas, commoditie universal, com ele tudo pode ser financiado. Ao relembrar episódios do seu passado humilde, não raro miserável, paira a sua frente uma névoa inócua trazendo da memória o cheiro dos almoços dominicais. Macarronada, frango assado, Coca-Cola... A ansiedade dos filhos ante o gesto afetuoso da mãe que, um a um, servia a todos, inclusive ao pai. Novamente o menino Mário ouve os risos, sente os afagos e quase pode apalpar a felicidade ingênua que impregnava o lar paterno, mas antes que o sentimentalismo lhe possua a alma, antes que os olhos umedeçam e alguma lágrima improvável role, seu álter ego, Dr. Mário, o especialista em direito tributário, resgata-o do saudosismo. Tardiamente Mário passou a questionar suas escolhas e tem tentado, ainda que momentaneamente, na ausência deste seu eu pragmático, ou junto da filha e esposa em seus raros dias de folga, degustar a vida, e sonha com a aposentadoria.

Subitamente seus olhos brilham como os de quem faz uma descoberta importante. Arregaça as mangas, leva o pulso à altura do rosto conferindo as horas. Desliga o computador puxando diretamente o plugue da tomada. Arrasta os papéis para dentro da gaveta. Afrouxa a gravata e joga o paletó por sobre o ombro. Já à porta, o céu lhe parece mais estrelado, a brisa agradavelmente tépida, a lua ainda maior. Apaga as luzes, ignora a calçada e segue pelo jardim, rumo ao estacionamento. Os passos altos sobre a grama úmida não evitam uma ou outra poça. Vê graça nos respingos de lama sobre os sapatos, nas barras da calça. Com um movimento de cabeça, cumprimenta o guarda noturno cujo olhar estranha-lhe o sorriso inédito. À certa altura do trecho, Mário reduz os passos diante do jequitibá banhado pelo luar. Uma árvore imponente e nunca antes notada. Raízes firmemente fundadas numa realidade que se estende para além das ingênuas ambições humanas, enquanto galhos e folhas, sujeitos ao acaso, não se omitem, não se escondem de nada. Árvores assim não vendem seu tempo, consomem-no integralmente elas mesmas. Vida honesta, livre, isenta, aberta a tudo e a todos.

Desemaranhando-se dos pensamentos, Mário nota que o paletó escorregara-lhe dos ombros metros atrás, a valise provavelmente esquecida passos antes. Sente a umidade morna embeber-lhe a partir das pernas. Enquanto os pés molhados afundam como se raízes lhe brotassem do tronco – tentáculos exploradores do submundo –, o vento brando beija-lhe carinhosamente a calva. Por todo o corpo, percebe potencializada a sensibilidade da derme, como se os neurônios também se expandissem em folhas. A perplexidade imobiliza-o de vez quando Mário se dá conta de estar nu, porém não há medo do ridículo, nem qualquer outra espécie de medo, de repente e desde sempre, tudo que ele precisa está e esteve a sua disposição, sem condições, sem preço, sem prazo, sem juros.

Os coletivos param, os fretados e os outros carros estacionam de volta, como se apenas há instantes tivessem deixado o pátio da empresa. Cumprimentos acalorados pelo sol da manhã. Mal começa o dia e, animados, os colegas de trabalho falam sobre os planos para o belo fim de semana que se anuncia. A sexta-feira segue em ritmo frenético, cadência de linha de produção. Nem diretores, nem subalternos, nem clientes, nem fornecedores, ninguém dá pela falta de Mário ou de seus relatórios, como se ele nunca tivesse trabalhado ali. Apenas Felícia, já no intervalo do almoço, tem a impressão de haver uma árvore a mais no pátio, um segundo jequitibá, porém não comenta, os colegas certamente a tomariam por louca.

CirineuCWB
Enviado por CirineuCWB em 20/01/2016
Reeditado em 22/02/2016
Código do texto: T5517060
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