O RESGATE DA MOTONIVELADORA AMARELA DE PLÁSTICO

Um comboio de carros de combate e jeeps militares passava na estrada lá embaixo quando minha avó chamou-me para o café da tarde. Ainda fiquei alguns minutos olhando o comboio que seguia em direção à ponte. Fiquei com medo do comboio, parecia o lobisomem da fronteira branca, que uivava nas noites de lua cheia e nas noites de lua morta e que algum dia viria me buscar se eu não fosse um bom menino.

Minha avó rezou a Ave Maria e pediu a Deus que não deixasse faltar alimento em nossa mesa. Meu avô ainda não havia chegado do trabalho e ela não viu o comboio na estrada.

Minha avó era do campo e não tinha medo de lobisomem ou bicho papão e também não tinha medo do carro de combate e seu canhão.

Algumas vezes eu ficava à noite no quintal olhando a lua, numa dessas noites ela me disse que aquela sombra no meio da lua era São Jorge. Eu achava que não era São Jorge, mas alguma coisa estava lá, alguma coisa improvisada, não sabia direito, mas alguma coisa estava lá, a me observar.

Olhando os mapas no Atlas Geográfico Escolar pensei em visitar Oslo e seus arredores em dias de neve, caminhar por suas ruas e dobrar suas esquinas, acho que seria como reencontrar a poesia. A primeira vez que encontrei a poesia foi quando assisti “Shane” e vi os sonhos correndo atrás dos dias desalinhados que não tinham mais como voltar.

Perto de uma das várias casas onde morei tinha uma estação de trem e na estação, só silêncio, engraçado, não havia linha férrea para os trens, não havia vozes, nem canções, só havia espaços que ficaram vazios nas lembranças mortas dos que passaram, dos que foram sacrificados em nome dos que viriam depois.

Prometi ao meu irmão ir à missa na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, não me esqueci de rezar, mas não tenho ido à missa, preciso cumprir minha promessa.

Já faz tempo que sai pelo portão que tinha três metros de altura, mas os fantasmas ainda estão recentes e às vezes, quando estou acompanhado por um copo de rum pergunto a eles quando irão deixar-me em paz.

Minha avó costumava tocar Chopin e Mozart em seu piano, eu ficava ouvindo no canto enquanto a tarde de sábado se despedia. Ela contava histórias, falava sobre Rodolfo Valentino, Doutor Jivago e o Cometa de Halley.

- “Eu tinha sete anos quando o Cometa de Halley passou, a noite parecia dia, achávamos que o mundo iria acabar, mas eu nunca tinha visto nada tão lindo na vida.”

- Quando ele tornar a passar a senhora irá ver novamente.

- “Não. Eu não estarei mais aqui.”

Minha avó ensinava, ela era professora, caminhava até a pequena parada lá na longe para pegar o trem Maria Fumaça e poder chegar a escola onde dava aula, mas ela não ensinava só geografia ou matemática, ela ensinava humanismo, ela ensinava paz.

Numa manhã eles entraram pela porta da sala, onde minha mãe gostava de ficar, e me levaram. Durante um bom tempo a única paisagem visível era o Monte Alegre e a única coisa que o clareava eram os balões que caiam por lá. Quando voltei não sabia muito bem onde estava, era tarde da noite, entrei em casa e liguei a televisão, estava passando “El Bruto” de Luis Bunuel, com Pedro Armendariz e Katy Jurado. Quando o filme acabou finalmente fui dormir, no dia seguinte levantei tarde e como não tinha o que fazer fui até a esquina e peguei um ônibus pra cidade. Fiquei vagando algumas horas, até que resolvi entrar num cinema. Estava passando “Deus e o Diabo na Terra do Sol” do Glauber Rocha, fiquei ali assistindo, com o olhar preso nas vezes que ouvi o uivar dos lobos e na fumaça entrando pela fresta da porta.