O salto

A ideia de uma morte por afogamento sempre o assombrou, fosse pelo caráter invasivo das águas, pela ansiedade implícita na sua simples menção, ou ainda por lhe avivar memórias de uma tragédia familiar. A morte por queda livre, ao contrário, não o assusta. Essa ele associa ao conceito de liberdade, de brevidade e leveza, razão pela qual a altura o atrai e seduz. Subir, voar, descer. Voar, mesmo que para baixo. Cair mais e mais rápido. Sentir a aceleração e o atrito do ar a despir-lhe de preocupações financeiras, de responsabilidades sociais, de cobranças familiares e até dos fardos que ele próprio se impôs. Durante a queda, as inquietações terrenas parecem se desprender dele, voam como lenços, como as pétalas minúsculas da taráxaco ou balões coloridos de hélio cuja origem e propriedade ninguém sabe, ninguém reivindica.

Alto, muito, muito alto. À altura das nuvens colossais com suas bordas douradas e brilhantes. Caindo mais e mais rápido, o cérebro lhe é embebido de adrenalina e o peito pulsa como um motor a combustão. – Quem precisa de drogas ilegais quando o próprio organismo produz todas as drogas necessárias? – Assim caindo tão de cima, a vida se lhe apresenta crua, nua como um bebê. O sangue em suas artérias berra, pois, ainda que o espírito esteja em paz, a mente sente medo. Apesar da brutalidade do vento que lhe fustiga as faces, a alma se mantém silenciosa, indiferente às reivindicações dos instintos e ao ronco bestial das turbinas. Nas alturas, a vida, ou a irrelevância dela, soa desafiadoramente selvagem e, entre o medo e o deslumbramento, o absurdo se faz tangível. Só a altura lhe dá a dimensão da sua insignificância.

Que lhe importa o mundo? Que lhe importa o estúpido patrimônio, os acúmulos de uma vida transitória? Que lhe importam os laços familiares e de amizade? Que lhe importa a imagem que construiu para os outros ou a que eles fazem de si? Por mais que se esforce por controlar vidas – a dele e as dos outros – e trabalhe, e invista na ilusão do controle, ao final, a verdade é que ele nada controla, então que lhe importa? Não, nada realmente importa, pelo menos durante os quarenta ou cinquenta segundos em que o tempo para e param também os pensamentos e, por mais que o coração acelere, a própria vida para. Durante a breve pausa todos os pecados e dívidas lhe são perdoados e, enquanto o paraquedas não se abre, a queda eterniza a verdadeira liberdade.

CirineuCWB
Enviado por CirineuCWB em 07/02/2016
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