Aqui Jaz

Arqueou as sobrancelhas ao olhar para o retrato. As lembranças se confundiam em sua memória, sem que conseguisse ter certeza da ordem em que tudo aconteceu. Não parecia importante, mas talvez fosse...

Andou até a janela, onde as cortinas imaculadamente brancas se embalavam levadas pelo vento que entrava pela fresta aberta. Espiou lá fora com cautela como quem se guarda de uma surpresa qualquer. Talvez, como quem se defenda do que não gostaria de enxergar. Mais aliviada, suspiro longo, ombros relaxados, puxou a cortina e se pós a olhar para além do vidro com a obstinação de quem sabe que nenhum mal é capaz de lhe alcançar. Já havia passado por tantos verdadeiros males na vida para tremer ou temer a escuridão, qualquer que fosse. Só havia uma da qual não poderia escapar, mas essa lhe acompanhava dia após dia, como uma amiga silenciosa ou uma inimiga sorrateira; a escuridão de sua própria alma. E dessa não podia fugir.

Acendeu mais um cigarro e tentou mantê-lo firme entre seus dedos trêmulos. Andava fumando demais e isso poderia lhe matar, lembrou das palavras dele naquela noite ao encontrá-la ali parada à janela, como quem assiste dia a dia a reprise do dia anterior, sem se importar de saber o roteiro de cor. Gargalhou na vida e na lembrança. Depois suspirou fundo e dolorido, tentando driblar a lágrima que se queria formar em seu olho esquerdo.

Mas que menina tola!... desdenhou de si mesma. Quantos outros motivos mais justos ou honestos tivera para derramar lágrimas na vida e nunca as derramou antes? Precisava de mais um whisky, antes que Teófilo viesse lhe importunar, com aquela velha conversa fiada de mordomo zeloso que se importa com o bem estar do patrão e levasse a garrafa embora de suas vistas, como fazia noite após noite, através dos últimos dias do último ano, que mais parecia um ano eterno, pois jamais chegava ao fim.

Tentou lembrar mais uma vez daquela noite fatídica. Ele havia chegado mais alegre do que de costume. Parecia embriagado ou talvez entusiasmado demais, o que não deixa de ser uma embriaguez, porém sem vestígios de álcool. Estava falando num tom mais alto e pegou-a pelo braço com uma força, que jamais em qualquer outro momento impunha em seus gestos ou carinhos. Porque aquilo parecia um carinho, mas era de uma violência que ela não estava conseguindo entender. Sentiu um receio nascer tímido em seu interior, mas que logo se espalhou e se transformou num medo quase apavorado do que poderia acontecer. Forçou um pouco mais a lembrança, pois naquele momento tudo se embaralhava de uma forma tão desordenada, que se perdia feito nuvem que se dissipa no céu sem deixar rastros qualquer em sua memória. Era tão estranho. Bebeu mais um gole e depois outro. Concentrou-se. Ele queria dançar. Pegou-a com ainda mais força e disse que precisavam dançar aquela canção:

-Mas que canção? - questionou atordoada. Não havia canção alguma! Tentou farejar seu hálito, mas não conseguiu reconhecer cheiro algum de bebida.

-É a nossa música! - girou-a empolgado - Você lembra da primeira vez que escutamos ela? Você se lembra como fizemos amor naquela noite?

Conseguiu se desprender dos braços dele e questionou, entre espantada e indignada, se ele estava drogado ou algo assim, pois estava estranho demais e não havia porcaria de música nenhuma tocando.

Ele deu de ombros, como se se quer tivesse ouvido suas palavras:

-Você entende que pode ser a última vez que a gente dança ela juntos? Me abrace e venha ser minha essa noite, como da primeira vez! - tentou envolvê-la novamente entre seus braços mas ela conseguiu se desvencilhar.

-Você está falando muita bobagem de último, primeiro... você sabe bem o que eu te pedi e você prometeu que iria cumprir...

-Ah sim... você está falando da porcaria de tempo que me pediu, como se tivéssemos algum "relacionamento" de fato - zombou, bebendo um gole de whisky da própria garrafa.

-Justamente por não termos relacionamento. Você tem a sua virgenzinha e eu tenho a minha carreira pra cuidar.

-Carreira? - ele gargalhou - Você não tem carreira há tempos. Você só tem a mim, porque todo o resto do mundo nem lembra do seu rosto, se quer do seu nome! Seu tempo já passou. Todo mundo te abandonou, só eu fiquei.

-Você não ficou! Você foi embora como todo mundo! Você só vem de vez em quando e eu nem sei o por quê! E eu já te disse que NÃO PRECISA MAIS VIR.

-Eu venho porque você é minha! - prensou-a contra a parede com força e começou beijar seu pescoço, mas ela conseguiu se desvincilhar mais uma vez.

Tudo escuro de novo. Alias, tudo branco, como uma nuvem embasando a visão. Por que fugiu dele se o que mais queria na vida era ficar eternamente enlaçada naquele abraço? Sabia que o dispensou só por capricho, só para vê-lo implorar para voltar, exatamente como estava fazendo naquele momento. Não entendia porque havia fugido dele aquela noite, por mais cansada que estivesse de ser a outra na relação. De todo modo, fora ela mesmo que nunca quis assumir nada até que ele encontrou uma virgenzinha qualquer para manter as aparências e se apaixonou. Tudo por culpa dela que disse que ele precisava de alguém para que não desconfiassem dos dois. O conselho mais tolo de sua vida. Mas a verdade é que gostava de bancar a mulher moderna e ser a dominante na relação, o que não percebia é que estava morrendo de medo pois estava completamente dominada pelo amor que sentia por ele. Por isso inventou aquela baboseira e por isso agora queria modificar as coisas mas já era tarde demais. Ele não a deixaria, mas também não deixaria a outra. Jamais.

Lembrou de alguns gritos e empurrões e de repente os dois estavam próximos a escada:

-Eu quero que você vá embora da minha casa. Eu quero que saia já e não volte nunca mais! - ordenou apavorada, mas não conseguia lembrar o porquê. Tentou forçar mais a memória e começou a sentir uma dor estranha no peito.

Ele estava no topo da escada com uma arma na mão ao mesmo tempo ele estava tentando abraçá-la e dizendo que lhe amava. Estava tudo muito confuso. Ele dizia que não queria perdê-la e ela estava chorando e tremendo apavorada. Então ele lhe abraçava com força, enquanto ela soluçava muito, mas não conseguia definir bem, parecia que estava deitada no chão e que um liquido quente tocava ou escorria pelo seu corpo. Não conseguia entender. Outra vez ele estava no topo da escada. Outra vez ela estava apavorada pedindo para ele parar.

De repente tudo clareou. Uma luz muito forte e estavam num jardim. E tinham algumas outras pessoas conhecidas e algumas que nunca vira antes, mas não eram muitas. Tentou reconhecer o lugar, mas a luz se apagou e agora os dois estavam deitados ao pé da escada. Deitados não, atirados, meio abraçados, chorando... parecia choro, mas também existia um silencio pesado e profundo no ar, até que viu Teófilo entrar correndo na sala pela porta que dava para os fundos da casa. Então a luz voltou e reconheceu Teófilo no meio daquelas pessoas. Ele parecia triste e carregava uma rosa vermelha na mão, o que não combinava muito com ele. Estava vestido de negro, mas o traje não parecia em nada com o habitual. O mais estranho é que todas as outras pessoas também vestiam preto. Resolveu andar com eles para saber para onde estavam indo. Teve a impressão de que ele também estava ali com ela, de que estava segurando em sua mão, mas pelo jeito tinha ficado atirado lá no chão, porque não estava ali. Ao menos não conseguia enxergá-lo entre aquelas pessoas, só Teófilo e a rosa vermelha. Aquilo era tão... tão fúnebre, despertou do sonho que jamais desejou acordar. Olhou a sua frente,, uma lápide, uma foto... uma foto sua. Uma foto sua sorrindo e as letras embaçadas... se aproximou mais. As letras garrafais, como pudera não enxergar antes? Não era a sua melhor foto. Se aproximou só mais um pouco. Teófilo atirou a rosa vermelha. Encarou as letras e desembaralhou as palavras:

AQUI JAZ.

MAMagni
Enviado por MAMagni em 12/02/2016
Reeditado em 28/03/2016
Código do texto: T5540928
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