O Moço


 
          “Não gosto de festas. Prefiro ir à missa.”
          Ela sempre dava a mesma resposta quando alguém a convidava a uma tertúlia, um casamento, um aniversário. Já ninguém se interessava em chamá-la. Era uma esquisita mesmo, ia acabar no caritó, ficar vitalina, moça velha. E nem era feia. Só tinha um jeito muito sério de ser. Não comentava com as outras sobre rapazes, nunca ninguém a vira interessada em alguém. Devia logo era entrar para um convento.
          Todos pensavam assim quando viam-na passar no rumo da igreja, o hinário nas mãos e o rosário no pescoço.
          Todos pensavam mas ninguém sabia. Ninguém sabia que ela queria, sim, ser convidada para ir às festas. Tinha os seus amores secretos, tão secretos que nem à Virgem Maria ousava confessar seus sentimentos. Mas além de ser muito tímida ela se achava feia, opinião sustentada pela mãe que não perdia oportunidade de dizer como o seu andar era desengonçado, seu jeito era esquisito, seu corpo não tinha formas, enfim, puxara toda à raça do pai. Nunca um homem haveria de desposá-la, afinal quem ia querer levar para casa uma tábua de passar roupas? E a mãe dava gostosas gargalhadas ao ver como ela ficava encabulada.
          Se a mãe soubesse…
        Se a mãe soubesse que a sua risada ecoava na cabeça da moça o tempo todo e que ela acreditava plenamente em cada palavra sua, talvez pensasse melhor no que estava a dizer. O fato era que a moça tinha desenvolvido um complexo de inferioridade beirando à depressão.
          Quando estava dando aulas de catecismo às crianças se sentia bem, era o seu bálsamo de todo sábado. Mas depois vinha o domingo e a semana inteira para ela comparar-se às colegas de escola e certificar-se do quanto a mãe tinha razão. Quando passava perto de um grupo de estudantes e ouvia suas risadas não precisava nem perguntar qual era a piada porque já sabia, a piada era ela. Imagine se alguém desconfiasse que ela tivera seus amores escondidos, seria ridículo, ela, a mosca morta, a insossa, apaixonada pelo rapaz mais bonito da cidade. E cada vez mais se fechava em suas convicções.

         No dia do aniversário da mãe ela se viu obrigada a vestir uma roupa nova e ficar um pouco no salão. Reparava como o pai tinha orgulho da beleza da esposa, ostentava-a como um troféu para os amigos invejarem. Realmente a mãe era uma bela mulher de trinta e quatro anos. Olhava então para os braços ossudos e se encolhia ainda mais na cadeira de palhinha rezando em silêncio para que o tempo passasse mais rápido e Deus, por favor, que a sua mãe não se lembrasse de sua existência e não a chamasse para tocar algo. Morreria de vergonha. Não tocava mal mas também não era uma virtuose. Tinha mãos grandes que abrangiam as teclas com ligeireza mas nunca tocaria tão bem como a mãe.
          Nesse momento o pai pediu exatamente que a esposa executasse uma valsa ao piano, no que foi acompanhado por calorosos aplausos. Do seu canto escondido ela viu a bela mulher mover-se com graça no salão, pensar em uma valsa com a cabeça levemente inclinada sobre o instrumento e começar a tocar.
         Mas quem era aquele rapaz do outro lado salão? Ela nunca o tinha visto. Devia ser de fora e, Deus, ele estava olhando para ela. Não era possível. Olhou em torno procurando alguma moça que estivesse atraindo o olhar do forasteiro mas apercebeu-se de que ela era o objeto daqueles olhares. Enrubesceu e mexeu nervosamente nas contas do rosário, baixando a vista.
         Uma mão forte, perfeita mão de homem estava estendida em sua direção. Ela ergueu penosamente o olhar para aquele rosto belo, ele só podia estar brincando. Mas não viu nenhum traço de zombaria naqueles olhos verdes. A barba e os cabelos eram de um tom louro-escuro, o peito era largo, os braços fortes. Como por encanto ela se viu dando a mão a ele e sendo guiada por aquele príncipe em uma dança que lhe dava a sensação de flutuar. Ele a olhava por dentro e o seu olhar dizia que estava tudo bem, que ele finalmente tinha chegado e sua única opção era dizer sim, sim ao amor, sim à vida. Ela riu e disse sim, sim, mil vezes sim, valsando naqueles braços que mandaram embora para longe o frio, a tristeza e a solidão. O seu amor tinha chegado, finalmente!
         Arrastou-a pela mão para o terreiro. Fazia um luar como ela nunca tinha visto, a Lua era uma imensa pérola no céu. Ele a enlaçou pela cintura e ela encostou sua cabeça naquele peito másculo em um êxtase repentino de amor. Nem percebeu que ele não falava. Não percebeu que ele a estava levando para longe da casa grande, para além do terreiro, para a margem do rio que corria profundo e silencioso ao clarão do luar. Foi lá que ele a beijou. Seu primeiro beijo. Um beijo de amor. Tirou o vestido branco, a camisola, a anágua e entregou-se a ele, Deus, o amor era tão quente, quente como o Sol! Não sabia mais o que era sentir frio. Nunca mais sentiria frio. O seu amor tinha chegado.
          Tomou-a nos braços. Mais fundo. Mais fundo. Olhos nos olhos. Os pêlos dos braços dele tornaram-se escamas. Guelras respiravam em seu pescoço. Ela não teve medo. Mais fundo. E afundou.
          
        
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 13/02/2016
Reeditado em 04/09/2016
Código do texto: T5542681
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