MENINA FEIA 

“Uau, minha cidade é linda”. Surpreendia-se no topo do prédio de cinquenta e dois andares. Encantava-se com as miríades de luzes espalhadas lá em baixo. Sentiu-se feliz imaginando que naquelas alturas estaria mais pertinho de Deus. “Ele nunca quis ficar perto de mim. Então subi para estar ao lado dele”, continuava sorrindo e mirando estrelas acima e abaixo. “Só de Deus não, também dos anjos. Também de mamãe. Oi mamãe, tinha certeza que viria para estar comigo nessa lugar maravilhoso”.
O trabalho de recreadora infantil somente a levava ao rés do chão. Ninguém faz festa de crianças no céu, pensava sentindo o vento forte, em pé, por sobre a mureta. Detestava aquele trabalho. Ter o rosto coberto pela máscara da princesa, usar a roupa ridícula, aquela bota horrível, a peruca de cabeleira vermelha imensa e que a fazia suar. Tinha a convicção de que se afastariam caso vissem seu rosto. O colo e as mãos tão disputados seriam largados de lado. Não permaneceriam juntos àquela mulher horrenda.
Sente-se em casa. A primeira. Um porão escuro no qual vivia com mãe e avó, sua cuidadora o dia todo. A mãe a deixava e encontrava adormecida. Nos finais de semana e mesmo quando, na aflição de tê-la ao lado, a acordava só se recordava de palavras gostosas. Mas ela morreu cedo. Simplesmente desapareceu de um dia para o outro. Muito mais tarde a avó lhe contou que fora atropelada por um bêbado ali mesmo, pertinho.
Mamãe chega ao terraço e a abraça a lhe soprar: “Como está linda, filhinha. Que bom que veio me ver aqui no alto. Mamãe estava preocupada, afinal tem tanto tempo que não nos encontramos. Promete que a partir de agora nunca mais me abandonará?”
Só ela a acha bela. Ninguém mais no mundo disse algo parecido. Nem a avó. Ela o que sentia era pena e mais de uma vez a ouviu dizer que havia recebido herança pesada: “Cuidar de uma menina sem nenhum futuro, feia, sem juízo e burrinha”.
“Mayara, sim, é que era uma garota bela! Verdadeira princesa, pena que tão má. Sentia prazer em se horrorizar quando eu chegava à roda de amigas. Rolavam de rir, menos Cláudia. Ela era companheira de fé. O que foi feito da vida de Cláudia? Zombavam da amizade entre nós, a feia e a preta. Em sala de aula Mayara e as colegas dela ganharam a cumplicidade de Dona Zenaide. Como professora deveria ter permanecido isenta. Não devia ter tomado partido, ainda mais a favor daquelas perversidades. Não é que dava risinhos quando Guilherme ironizava a feiura e a pretice delas duas?”
Decidiu largar a escola. Tinha uns onze anos. Não saía pelas dificuldades de aprendizado. É que se sentia péssima naquele ambiente. Nessa época moravam ao lado da linha do trem. Fingia estudar. Saía do barraco no horário da aula deixando a mochila escondida do lado de fora sob um tonel, apanhando-a ao retornar, até que um dia mochila, cadernos e livros foram abandonados sob o barril.
No bando não tinha essa coisa de bonito e feio. Mais do que com beleza ou feiura importava ser forte. E ela o era. Ganhou respeito. A terceira do grupo. Cabelinho liderava, subchefe era Dentão, depois vinha Léia, a única mulher dentre aqueles quase vinte garotos. A única que se dera o apelido: Gata.
Era preciso dinheiro para comprar as latas de cola. Geravam sensação deliciosa e escondiam a fome. Dentão os ensinou a roubar. Para não chamar muito a atenção dividiam-se em três times. Buscavam as vizinhanças dos colégios de ricos. Moleza arrancar deles os lanches, relógios, tênis e celulares. Cabelinho apareceu com um skate. Encantou-se. Logo também ela tinha o seu.
De quantas vezes fora presa tinha perdido a conta. Acaso lhe perguntassem responderia simplesmente: “O mesmo tanto que havia fugido”. Lá dentro era terrível. Naquela hierarquia não contava e as líderes eram violentas. Tratavam as que chegavam como escravas. Só as bonitinhas se safavam tornando-se protegidas e mesmo namoradinhas delas.
Aos dezoito anos, daquele grupo inicial reparou que só restavam mais dois. Chorão, na Igreja e Dico Preto, carroceiro ajudante do padrasto. Começou a se sentir deslocada em meio aos chamados crias, aqueles mais novos que iam chegando em substituição aos mortos.
Começou a andar sozinha e numa noite sonhou. O anjo lhe apresentava seu verdadeiro talento: artista. Lembrou-se dos cadernos com desenhos bonitos que apresentava para Cláudia. Definiu que seria preciso lutar pela visão. Queria contar para alguém mas a avó não mais existia e, mesmo que viva fosse, não entenderia e muito menos lhe prestaria atenção.
“Esses vestidos de princesas dos contos de fadas no varal, você os usa em algum lugar?” Perguntou curiosa à filha da vizinha. Explicou-lhe ser animadora de festas infantis e que aquelas roupas eram usadas nas festinhas. “Estão sempre precisando de moças por lá. Se quiser posso apresenta-la ao responsável”.
O homem lhe ofereceu a princesa mascarada. Aquela que nenhuma das meninas queria ser. “Tenho uma vaga sim, mas terá que atuar com o rosto coberto. Topa?”. Sabia a razão daquilo. Estava acostumada. Não mais roubava e precisava de dinheiro para se manter e alcançar o sonho e afinal aquilo não deixava de ser um pouquinho de arte. O trabalho agora a sustentava. Festa de criança não acaba tarde. Tinha a noite toda para sair com a nova turma. Todos eram artistas e de novo só ela mulher.
Um dia antes tinha notado a gerente preocupada. Haveria evento importante e uma copeira, picada pelo mosquito, adoecera. Ofereceu-se para a substituição. Sabedora de onde ocorreria a festa, não perderia por nada a oportunidade. Seria uma ocasião única para apresentar sua arte à população.
Escapou da montanha de pratos, talheres, copos e taças brotando a cada minuto. Subiu dois lances da escada de emergência e estava no terraço. De um lado o heliporto. Do outro antenas. Assumira a mureta divisora entre aquele espaço e o nada. Testava a coragem dando voltas, cada vez mais rápidas, por aquela linha.
“Vem, mamãe, venha comigo. Veja como sua filhinha linda se tornou artista”. E aos olhos carinhosos da mãe, Léia, a gata, agacha-se ágil. Os pés tateiam buscando o ressalto na parede. Uma mão tenta segurar a mureta lá em cima. A outra maneja o spray. Desenha o rosto da felina, por baixo a flor. Quando tenta, fechando o desenho, colocar sua marca, o nome artístico, Catleia, os dedos não mais a sustentam. A Flor voa para o infinito. “Olha, mamãe, estou indo com você”.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 28/03/2016
Reeditado em 15/09/2016
Código do texto: T5587159
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