A invocação

Era um quarto pintado de negro, sem janelas, um tanto quanto abafado por esse motivo. Antigamente havia uma janela em que o sol entrava, levando calor e claridade, mas ela fora tapada com tijolos. Não era um cômodo grande, mas não parecia tão pequeno assim por que não haviam muitas coisas nele. Mas as coisas que estavam lá eram incomuns, para um apartamento em Florianópolis.

Para diminuir o abafado um ventilador soprava um vento fraco, de cima de uma mesinha branca de plástico, que contrastava com o resto do ambiente. Ele vibrava a mesinha, que possuía uma das pernas menores do que as outras, gerando um zumbido contínuo. Havia uma iluminação fraca, que não banhava inteiramente o quarto de luz, criando sombras fantasmagóricas nas paredes. Cinco velas acesas no chão, dispostas em cima de um desenho de pentagrama, feito com giz branco. O pentagrama ficava no centro do quarto, com a ponta virada para norte. Dentro dele havia um círculo menor com algumas palavras, escritas em hebraico com muito zelo e cuidado.

Uma figura entrou no quarto, com roupas totalmente negras e cabelos compridos. Era um homem jovem, não mais que 18 anos. Usava no pescoço um pentagrama feito de prata. Ele pegou o livro no chão e comeaçou a folhear, em busca de uma página específica. Assim que encontrou, pegou novamente o giz e desenhou um triângulo, na frente do pentagrama, quase que colado com a parede.

“Espero que dessa vez Amduscias me escute.”, disse, começando a desenhar dentro do triângulo.

A arte que ele copiava significava o nome do demônio que iria ser invocado. Ele errou algumas vezes, tentando fazer com que ficasse igual ao livro, mas no fim o trabalho ficou satisfatório. Estava muito bem feito, ele sentiu que dessa vez “um dos senhores das profundezas iria visita-lo”. Saiu do quarto e voltou, com uma caixa de som. Ela começou a tocar o black metal mais blasfemo que ele possuía na sua coleção de MP3, no caso era Gorgoroth. Na playlist também havia Bathory e Mercyful Fate. A ideia era criar um clima para que o demônio finalmente se revelasse.

Ele pegou um pequeno cajado e ficou no meio do círculo. Espalhou um pouco de sal, criando um círculo que o protegeria, pelo menos é o que leu em um fórum de magia negra. Começou com as orações que faziam parte do ritual, assim como algumas conjurações e banimentos. Havia feito esse ritual várias vezes, as palavras já estavam na ponta da língua. Para ele estavam em seu coração e ele estava falando de coração. Mas por que nada acontecia e nenhum demônio aparecia, era um mistério. O ritual estava correto, até pôs música para agradar os espíritos.

E do nada, a temperatura caiu e ele sentiu frio. Ele ficou nervoso, pois finalmente estava funcionando. Satan My Master tocava ao fundo, o clima era perfeito. E do nada, um homem apareceu dentro do desenho do triângulo. Ele era um homem jovem de terno, com barba bem cuidada. E o cabelo loiro, oxigenado.

- Dá pra desligar essa música barulhenta, mortal? Sério, esse cara nem canta, só grita. E essa guitarra é só barulho, cadê a musicalidade? Desliga faz favor.

- O rapaz saiu do centro do pentagrama, meio que assustado e chutando um pouco do sal. Desligou a caixa de som. Voltou rapidamente para dentro do círculo, com o sal todo espalhado.

- Muito obrigado! Agora podemos conversar. Tenho algo bem sério pra te dizer, cara. Sério mesmo. Primeiro parabéns, você se superou no ritual. Nem todo mundo consegue escrever em hebraico desse jeito. De novo, parabéns.

- Hmmm errr, obrigado Senhor.

- Não precisa me chamar de Senhor, é muita formalidade. Lá embaixo a galera me chama de Dudu. Amduscias é muito feio, você não acha? Pois bem, é o seguinte: para de fazer esses rituais. Eu nunca te respondi por um motivo bem especial.

- Ah, pois é. É difícil desenhar teu selo, sabe. Decorar tudo também não foi fácil.

- Não não, não foi isso cara. Foi essa música horrível e alta. Sabia que toda vez que alguém faz o ritual corretamente escutamos tudo lá do inferno? Essa música barulhenta atrapalhando meu pagode, sabe como isso é irritante e chato? Você me tirou a paciência. Quantas vezes foram, tirando essa? Duas ou três?

- Quatro.

Quando o rapaz falou isso, os olhos o demônio começaram a ficar vermelhos e o cômodo ficou quente. De longe, um som de pandeiro ecoava.

- Sabia que só pode tentar três vezes, né? Mas vou quebrar essa regra, cansei de você. O que quer, desembucha antes que eu desista.

O rapaz pareceu mais assustado do que já estava. Olhou para baixo e deu um pequeno sorriso, e olhou de volta para Dudu, o demônio.

- Quero ser bom na guitarra, Senhor Dudu.

- Nem sei pra quê perguntei, algo já me dizia isso. Metaleiros. Cara, isso já é passado. Sabe o que a gente ouve lá no inferno? Pagode. Teve uma época que a galera ouvia metal, mas isso faz um bom tempo. A moda é pagode. Sou fã do Belo, olha meu cabelo, ficou igual ao dele né?

Ele estalou os dedos e do nada um pandeiro apareceu em suas mãos. E ele fez um solo de pandeiro de 5 minutos, enquanto sambava enfurecidamente.

- Pá ra pá pá parou!

E parou de tocar o instrumento. Ele realmente era bom nisso, o rapaz pensou. Bateu palmas.

- Então, vou te dar um presente melhor do que tocar guitarra. Agora você é o Rei do Reco-reco.

- Reco-reco? Eu pedi guitarra, e eu não gosto de pagode, tá maluco cara? Tá me tirando? E logo reco-reco?

- Você tem certeza que vai falar assim com um demônio?

O demônio falou com uma voz alta e profunda. O rapaz ficou extremamente apavorado e começou a pedir desculpas, gaguejando.

- D-d-d-desculpa, nunca mais irá acontecer.

- Não sou rancoroso, desculpas aceitas. Agora que te dei essa dádiva, hora de me pagar.

- Faço o que for necessário. Serve sangue de porco? Tenho que matar alguém?

- Ei cara, calma aí. Nada assim, você acha que sou um psicopata? Sou de boa. Olha só, nunca mais me chama. Nunca mesmo. Se você me chamar, te levo pro inferno e vou inventar uma tortura só pra você, ok?

- S-s-sim senhor. Nunca mais farei isso. Prometo.

- Ótimo! É disso que gosto, me dá um abraço.

O demônio deu um abraço bem apertado e até carinhoso no rapaz, que não conseguia retribuir da mesma forma.

- É assim que gosto! Agora vamos fazer uma rodinha. É assim que fazemos no inferno pra comemorar os pactos feitos.

Ele estalou os dedos e do nada seis outros demônios apareceram, cada um com um instrumento: surdo, gamzá, timbal, repique, cavaquinhos.

- É isso aí galera, vamos fazer aquele pagode que só Satanás aprovaria! Tu aí, manda ver nesse reco-reco!

E tocaram a discografia inteira do Só Pra Contrariar. O rapaz chorou a noite inteira.

Alípio de Jesus
Enviado por Alípio de Jesus em 02/04/2016
Reeditado em 04/04/2016
Código do texto: T5592927
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