Estória de outra menina excepcionalmente bonita

Ao nome de batismo, herdado da avó, segue-se uma dessas impronunciáveis alcunhas em que o número de consoantes excede em muito o de vogais. Tem os olhos de uma clareza estranha, nem verdes, nem azuis, e sobre o rosto de mármore escorrem cabelos de bronze, como lençol sobre obra que se quer resguardar. Maria é negra, Maria é índia, Maria é eslava. Maria é uma dessas musas híbridas que, quando nas passarelas, encantam o mundo e que só o Brasil produz. Maria é menina. Maria é moça. Precocemente, Maria é mulher.

Forjada à inanição, Maria foi ingênua um dia e por ingenuidade padeceu mais que de fome. Apaixonou-se por um menino tolo, chorou e, como toda menina tola, considerou o suicídio. Superados os meninos, Maria sonhou um país das maravilhas, com paredes de espelhos e torres de vidro e passarelas ao invés de ruas, com flashes a substituir outdoors e postes. Quando o sonho enfim se realizou, as luzes lhe causaram náuseas, mas lhe ordenaram que continuasse sorrindo e, ao sorrir triste, mais gente a cultuou. Maria agora está infeliz, porém a natureza da sua infelicidade torna aos seus orgulhosos e felizes. Ancorada pelo orgulho e felicidade alheios, Maria suporta o aperto no peito e a insipidez dos dias. Maria caminha, Maria gira nos calcanhares e, porque lhe disseram que esta é uma arte contemporânea e importante, entre pausas para fotos, Maria faz caras, Maria faz bocas. Maria, caras e bocas.

Pareceu-lhe tão vasto em outros tempos este mundo visto de fora, porém, uma vez dentro, Maria se sente enclausurada. Aviões, hotéis, passarelas, estúdios e cenários abertos, Maria se sente vigiada. Paris, Nova Iorque, Milão, Maria se sente expatriada. Nenhuma colega ou assistente, nenhum fotógrafo, maquiador ou agente, com seus sorrisos digitais, oferta-lhe um abraço ou a trégua de um colo. Deixar as lágrimas rolarem não cabe, não convém, então apenas o pó, inspirado na solidão dos banheiros e camarins, reporta-a à pré-adolescência e restitui-lhe a coroa e o trono em sua corte de bonecas.

CirineuCWB
Enviado por CirineuCWB em 06/04/2016
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