Apontamentos para um romance - III

Tu dormias tranquilo quando me levantei, na manhã fria. Não queria te acordar, tinhas o hábito de dormir tarde e despertavas com barulhos mínimos. Busquei os chinelos forrados de pele, que deixava embaixo da cama, com a parte da frente a descoberto, para facilitar a tarefa de enfiá-los quando me levantasse. Envolta no roupão peludo, que se estendia até os pés, entrei na cozinha e fechei a porta com cuidado. Preparei um café bem quente para manter o calor do corpo.

Na sala, abri as cortinas e espiei os albores do dia. Queria ver, naquele início de manhã, se havia sol, ou se havia sinais de que fosse aparecer. Os dias feios, inevitáveis no nosso inverno, me punham para baixo (e, posso dizer, ainda hoje não os tolero bem). Pior, quando se sucediam longos períodos de chuva. Em compensação, sempre que surgia o sol, eu fazia questão de festejá-lo, tomar o caminho da rua, percorrer a cidade em várias direções.

Peguei o jornal, passei os olhos pelas manchetes. Eu te esperava. Tínhamos resolvido que deverias consultar um neurologista. A princípio, houve certa resistência da tua parte, não tão pouca que a coisa se resolvesse em curto espaço de tempo. Procurei ser firme, embora não dispensasse um jeitinho: seria contraproducente entrar em confronto direto contigo. Terminaste concordando. Meio a contragosto, é verdade.

-- Vamos?

Tu estavas bonito, quando surgiste do quarto. Quase tão charmoso como naquela noite em que te percebi, na festinha da turma da faculdade. O acinzentado dos cabelos te caía bem. Pequenos indícios,

imperceptíveis para os outros, com certeza, sinalizavam que já não mantinhas, plenamente intacta, aquela segurança um pouco displicente que costumavas apresentar. Por isso, era necessário pesquisar, descobrir, tratar.

Quando fomos pegar o carro, na garagem, tu me envolveste num abraço e me beijaste o rosto, cheio de carinho, num gesto que fortaleceu a cumplicidade que existia entre nós.

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Obs.: Aqui encerro meus apontamentos para um romance. O fato de divulgá-lo, à medida que vou escrevendo o texto, me parece muito interessante, mas poderia me impedir de enviá-lo posteriormente para concursos. Acredito que os meus amigos recantistas entendam. E que, se o romance de fato se materializar, procurem lê-lo. Um grande abraço a todos.

béti mecking