UMA CRUZADA CONTRA AS PALAVRAS ( PARTE II)

1- A VOZ DO MUNDO E OS SILÊNCIOS DO PENSAMENTO

Cá estava eu novamente fechado em minha rotina. Escutava novamente a voz do mundo nas ruas e tentava evitar o pior. Alguém precisava combater as palavras e, por alguma razão, esta missão era minha.

Não tenho memória... Por isso não me surpreende esta estranha sensação de que algo importante aconteceu nos últimos dias, embora eu não seja capaz de lembrar qualquer detalhe do ocorrido.

Era conveniente não ter memória, pois assim eu era muito pragmático e restrito com as palavras e elas não podiam me dominar como fazem com a maioria das pessoas.

Agora a pouco, em minhas andanças matinais pela cidade, impedi um cara de bater na mulher durante uma briga de casal. Eu havia seguido alguns fragmentos de conversas que levaram até ele. Todos falando de brigas e agressões. Era assim que eu salvava pessoas.

Isso pode parecer fácil. Mas na maior parte das vezes não é. Eu não posso persuadir as pessoas verbalmente. Não enfrento as palavras diretamente. Evito coercivamente seus atos tal como posso e sem esperar ser compreendido. Qualquer explicação é desnecessária.

No caso especifico deste casal, tudo foi bastante complicado. Me precipitei sobre o cara antes que ele acertasse um soco na mulher que gritava como uma louca. Mas, ao contrario de demonstrar gratidão, ela simplesmente avançou para cima de mim tentando defender o companheiro. Tive que enfrentar os dois. Mesmo assim valeu a pena. Depois da minha súbita e inesperada intervenção, a conversa entre eles mudou. Passaram a falar de outras coisas, esqueceram as ameaças de agressão e ofensas verbais. Eu virei o assunto... Sei que algo muito ruim teria acontecido caso eu não tivesse intervido.

Agora uma nova sequencia de fragmentos de conversa me levava para outro bairro da cidade. Logo identifiquei o objeto da minha intervenção. Era um cara mudo... a temática desta vez não me parecia muito clara pois dizia respeito ao silêncio. Eu fiquei pelo menos meia hora seguindo o rapaz pelas ruas. Até que de repente ele parou e caminhou na minha direção. Ficou me encarando sem dizer nada. Mesmo assim eu sabia os pensamentos dele dentro da minha cabeça.

“-Você... Eu sei o que você faz. Você tira a atenção das pessoas. As impede de pensar e viver. Você quer corrigi-las segundo o que pensa que deve ser. Mas quem é você para saber isso?”

No momento seguinte era como se ele tivesse invadido minha cabeça e eu a dele e ambos tivéssemos sido arremessados para algum outro lugar. Era uma espécie de limbo. Um lugar frio e escuro onde nada existia, nem mesmo um chão.

Foi uma boa briga. Eu não conseguia entender nada. Levei algum tempo para perceber que aquele rapaz cego não era uma pessoa. Ele era um encadeamento de palavras. Ele ela uma frase... tinha verbo, sujeito e predicado. Eu estava sendo diretamente atacado pelas palavras. E as palavras são cegas. Elas não enxergam... A única forma de enfrenta-las é com o corpo, através de gestos. Também é preciso focar o pensamento em imagens ...

Você não sabe do que estou falando. Mas uma grande batalha aconteceu naquele limbo.

Quando tudo acabou eu me vi sozinho no meio do nada. O rapaz desapareceu repentinamente. Mas ninguém havia vencido...

2- A VOZ DO MUNDO E AS PALAVRAS

Eu lidava com a voz do mundo através dos pedaços de conversas que colhia nas ruas. Mas as palavras também dominavam através dos livros. No terreno da escrita, entretanto, eu não era capaz de enfrenta-las. Ali as palavras eram mais sutis e poderosas na arte de exercer seu poder através da sombra dos pensamentos. Minha arena era as ruas e as situações mais cotidianas.

De modo geral as pessoas não sabem o quanto as palavras comprometem suas certezas, o modo como são manipulados por elas. Mas existe um jogo, uma trama das palavras que vai muito além de seus significados. Nós não as usamos. Somos manipulados por elas e sua necessidade narcisista de auto afirmação.

Uma menina cheia de vida e com todo futuro pela frente esbarrou em mim hoje. Mas as palavras que ela vivia lhe tiravam toda perspectiva das coisas. Eu a ouvia falar, mas não via uma pessoa por traz das palavras. E assim é na maioria das vezes.

As palavras não dizem as coisas, não correspondem a elas. Mas se alimentam das coisas como se alimentam de nós mesmos no seu acontecer como enunciados.

A vida é a organização das palavras em discursos. Esta é sua existência. Mas elas não existem em si mesmas. Elas precisam de nós. Enquanto as pessoas não perceberem isso, estamos sujeitos aos seus caprichos. As palavras dormem na sombra...

Voltei para casa, para o meu quarto logo no início da noite. As vozes do mundo se calam entre aquelas quatro paredes quando me deito e, simplesmente, não penso em nada. A solidão é a melhor maneira de fugir ao domínio das palavras.

Gosto do sono...

De me perder do mundo

E das palavras através dos sonhos.

Através deles minha existência

Ganha plena realidade

E eu já não me importo

Se quer com o relativo fato

Da minha existência.

Existo como metapalavra

E corpo físico e abstrato.

Quando já quase adormecia aquela mulher nua apareceu do nada flutuando diante de mim. “ Eu sou a palavra do tempo” Era tudo o que ela dizia. Então, uma senhora surgiu deitada ao meu lado. Mirou-me nos olhos e disse: “- Cuidado com o Sr. Tempo meu filho. Ele quer acabar com todos nós.”

Ambas me pareciam familiar... Devo tê-las conhecido em algum momento. Mas isso não é importante. Tão subitamente como apareceram ambas simplesmente sumiram no ar. Não há muito a ser dito sobre isso. Coisas assim acontecem o tempo todo.

Existo dentro do meu silêncio. Talvez algum dia as pessoas finalmente entendam que não dependemos das palavras, que não precisamos delas para compartilhar o essencial. A vida dos discursos não devia valer mais do que a vida das pessoas. Mas não é o que acontece.

Estou com sono...