UMA CRUZADA CONTRA AS PALAVRAS (PARTE IV)

ATÉ AS PALAVRAS MORREM

[...] Nada a retinha, nem o medo.

Más mesmo que agora se aproximasse a morte, mesmo a vileza, a esperança ou de novo a dor. Parara simplesmente. Estavam cortadas as veias que a ligavam as coisas vividas, reunidas num só bloco longínquo, exigindo uma continuação lógica, más velhas, mortas. Só ela própria sobrevivera, ainda respirando. E a sua frente um novo campo, ainda sem cor a madrugada emergindo. Atravessar suas brumas para enxerga-lo. Não poderia recuar, não sabia por que recuar.

Pg 179 ( Perto do coração selvagem.)

CLARICE LISPECTOR

Colher fragmentos de conversas hoje pelas ruas me conduziu hoje a um destino diferente. A voz do mundo tinha por tema ou trilha doença e morte. Depois de muito perambular acabei em uma casa simples onde um velho moribundo jazia em uma cama apodrecendo em vida. Era o que indicava o mau cheiro e as moscas. Era um cômodo de subúrbio. E não me perguntem como acabei ali sentado ao lado do leito segurando sua mão. Ele estava claramente nas ultimas. Seu rosto não me era familiar, mas podia ser muito bem alguém do meu passado, pois no fundo sentia certa ternura por ele. Não podia salva-lo, mas por alguma razão era lá que eu deveria estar. Sabia disso.

Não faço ideia do tempo que permaneci ali segurando sua mão sem dizer uma única palavra. Só sei que o vi morrer e depois fui embora carregando luto. A morte não cabe na trama das palavras. Elas estavam ausentes naquela ocasião. Só se interessam por pessoas saudáveis e ativas que possam gerar gestos e ações. Logo, eu deveria estar lá por outra razão. Mas não arrisco nenhum palpite. A morte não é um tema que aprecio. Mas aquele silencio que compartilhei com aquele moribundo parecia dizer muita coisa sobre a natureza das palavras e sobre o seu jogo de manipulação das coisas humanas.

Tudo só termina quando a vida acaba... E as palavras escrevem o texto na expectativa do ponto final da morte apenas pelo prazer de poder começar tudo de novo e fazer diferente o sempre igual. A vida delas transcende nossa voz, nossa morte... Somos todos descartáveis desde que o texto seja perpetuo na voz de alguém.

Como aquele velho moribundo tinha chegado até ali? Quais as suas lembranças, experiências e realizações? Eu não fazia nenhuma ideia. Ele para mim não habitava qualquer texto conhecido, não fazia parte de qualquer trama. Mas e se fizesse? Isso mudaria alguma coisa? Ele estaria morto da mesma forma e sem ter mais nada a dizer. Todas as suas palavras estariam apagadas ou abandonadas em algum passado que desapareceria com a sua memória.

Mas também existem palavras mortas, são aquelas que não são mais usadas por ninguém ... Mesmo as palavras morrem... Não importa quantas vezes são ditas.

A palavra morta é oxítona?

Talvez componha meu epitáfio ....

Meu derradeiro eco de silêncio

Que pouco será ouvido

Porque as pessoas falam demais.

Alguns fragmentos de conversas do dia de hoje e dos quais não me lembrarei amanhã....

Sei que de algum modo eles ficarão enterrados dentro de mim entre os tantos fantasmas das coisas que esqueci:

“Hoje esta tudo pela hora da morte. Principalmente o preço dos remédios.”

“Não deixe para me mandar flores quando eu morrer. Não saberei o perfume.”

“ Basta estar vivo para morrer. Afinal, como existiria a noite se não fosse o dia?”

“ Meu pai não durará muito e eu vou morrer um pouco com ele.”

“ A morte dos outros alimenta minha solidão, sabe?