Ana

Guilherme tinha uma gata que dormia a seu lado. De manhã, quando acordava, ela ficava com preguiça de se levantar. Enfiava a cabeça debaixo do lençol e cochilava mais um pouco enquanto ele preparava o café da manhã; só saía de lá quando ouvia o barulho da ração sendo despejada no potinho — aí vinha correndo. Era uma gata branca com um olho de cada cor; tinha 16 quilos e fazia regime. Seu nome era Ana.

Por que Ana? Porque soava melhor que Mimi, Nina, Annie, Cléo, Cookie, Luli, Jade, Linda, Princesa ou qualquer outra coisa do tipo.

Ana passava a maior parte do tempo deitada — de lado, porque de barriga para cima não conseguia respirar direito — no sofá em frente à televisão ligada, comendo snacks de pasta de fígado ao lado do dono... Sim, Guilherme também comia snacks de pasta de fígado. Eram melhores que os famigerados salgadinhos de “isopor” e tinham muito menos gordura — mas não parecia estar funcionando para a gata. Talvez ela simplesmente tivesse problema na glândula tireoide.

Ana parecia muito mais humana que a maioria dos seres humanos, pensa que não? Suas brincadeiras favoritas eram esconde-esconde e o gato mia. Gostava de música clássica e de tardes chuvosas. Adorava praticar yoga com a mãe de Guilherme. Savasana, a chamada posição do cadáver, era a sua favorita.

Às vezes quando chegava em casa Guilherme encontrava-a deitada na cama, a cabeça no travesseiro e o cobertor puxado até o focinho, mesmo sendo de dia e fazendo um calor tremendo. Lembrava até uma de suas ex-namoradas que fazia exatamente a mesma coisa — aquela que ele perdera porque era alérgica a pelo de gato.

E assim eles viveram felizes e satisfeitos um com o outro por muito tempo...

Só que um dia o pior aconteceu — pois assim é a vida, e não adianta reclamar —: durante uma visita rotineira ao veterinário descobriram que Ana estava com câncer no estômago — porque comera muita porcaria durante toda a sua vida. Qualquer coisa que Guilherme deixasse a mostra ela comia: cadarços, folhas de caderno soltas, carga de caneta, chinelos, meias, cascas de banana, pen-drives, parafusos e por aí vai. Os favoritos dela eram os elásticos de dinheiro. Para a gata, talvez isso fosse uma forma de mostrar apreço pelo dono. Talvez não.

Ana foi forte ao receber a notícia; reagiu pulando da mesa cirúrgica e indo se deitar sobre as confortáveis cadeiras da sala de espera. Fazia anos que Guilherme não via ela pulando de lugar nenhum. Correu atrás dela, achando que pudesse ter se machucado, mas que nada. Tirando um cochilo, esperou pelo dono. Guilherme tentou ser tão forte quanto ela, mas no carro as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Colocou os óculos escuros para que Ana não lhe visse daquele jeito.

Um dia, passadas algumas semanas, ao acordar, Guilherme percebeu que Ana havia feito xixi na cama. Tal coisa nunca se sucedera antes. Guilherme deu-lhe uma bronca, e quando voltou com o pano e o álcool, viu que ela também tinha feito xixi no tapetinho da entrada do quarto. Então percebeu que havia algo errado. Saiu desesperado atrás da gata. Encontrou-a caída no meio do caminho que levava à área de serviço — onde ficava a caixinha de areia. Ana deu um miado baixinho que significava "desculpa", e ficou olhando para a cara do dono. Ele a abraçou. Disse que tudo ia ficar bem, enquanto a enrolava em uma toalha e a colocava dentro do carro.

Naquela mesma tarde Ana foi sacrificada. Guilherme assistiu enquanto ela recebia a injeção letal — o tempo todo segurando a patinha dela. Ele chorava copiosamente. Ela apenas o olhava sem miar nem se debater. Talvez ela soubesse de algo que ele não sabia; talvez ela estivesse sendo forte pelos dois.

Guilherme nunca mais se esqueceu do olhar dela em cima da mesa de cirurgia; os olhos diziam "Está tudo bem. Você até que é um cara legal. Estou pronta para partir. Não chore".

Era uma gata. Seu nome era Ana.

Gilberto Sakurai ~O Maldito Escritor~ 02/04/2010

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Gilberto Sakurai
Enviado por Gilberto Sakurai em 13/08/2016
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