Hoje o meu dia chegou

Estou com medo. Para que mentir agora, fazer-me de forte quando estou quase que literalmente sujando as calças. É, o primeiro passo não é tão fácil assim quanto eu pensava. O último também. Estou prestes a dar um fim a minha vida e nem mesmo consigo segurar a arma direito. Eu tremo. Começo a suar. Minha visão está meio turva. Cambaleio. Quase caio. E uma voz cínica,cheia de si, soa do fundo da minha mente:

Maldita covarde!

È o meu outro eu, tudo o que eu queria ser, como sempre elevando a minha já baixa auto- estima. Tento fazer-me de surda, mas ela está certa. Merda! Odeio estar errada. Dar o braço a torcer é algo que simplesmente acaba com meus sensíveis nervos. Mas é a pura verdade, eu sempre fugi de tudo e todos. Funciona para mim.

Conta para eles como chegou aqui.

Tornei-me algo um tanto insosso, entediante, não nego. Mas acho que posso me dar ao luxo de ser egoísta ao menos desta vez. A última vez. Tenho certeza que irão me compreender, devido as circunstâncias. Bem, chega de tagarelar, este nunca foi o meu forte. Melhor fazer como ela disse, lembra?

Começar a contar a minha história, para que entendam como cheguei aqui, o porquê dessa minha decisão tão trágica e imutável. É claro que em determinadas partes, que não são tão poucas assim, parecerá um pouco chato. Talvez repetitivo. Voce decerto vai pensar - já ouvi isso tantas vezes - e tenho certeza que sim. O meu problema não é nenhuma novidade, há tantos assim como eu, sofrendo das mesmas faltas. Mas quando é que se tem o privilégio de participar de algo tão grande como estou propocionando? Ver alguem morrer, compartilhar as suas últimas horas, ouví-lo, é uma honra. Pelo menos eu considero isso. É um sinal de compaixão, tão escassa nos dias de hoje. É claro que nem todos irão compartilhar da minha opinião, o que é uma pena.

Contar uma pequena parte, mas crucial, da minha história vai me fazer manter a calma para executar o meu último ato. E calma é algo que estou precisando muito nesse momento. Deus, eu não paro de tremer. Mas que merda, será que estou perdendo o controle? Não, esse não seria o momento mais propício.

Bem, o sol vai caindo lá fora, melhor apressar-me pois a hora não tarda a chegar.

Já era tempo!

"O COMEÇO"

Voce pode estar pensando que tive uma infância digna de pena, mas está enganado. Sorvi muitos vinhos. Doces vinhos. É claro que em determinados momentos senti um gosto amargo na boca, mas a presença de meu pai dava-me a certeza de que eu não estava sozinha. Será que estarão dispostos a ouvir reminiscências infantis? Mas, o que me importa? vou contar assim mesmo.

Imagine uma fortaleza cercada por muros por todos os lados. Essa era minha casa. Só que esses muros chamavam-se “ papai”. Eu era protegida, eu era amada, eu era ...

Eu era muita coisa . Sabe o que é isso? Voce ser a razão de viver para alguém dá uma sensação inefável. Eu fui a razão da vida dele. Eu lembro do dia em que fui humilhada na escola simplesmente por não ter o padrão de beleza exigido pelos meus “ilustres” colegas de classe. Eu senti-me mal, muito mal. Um verdadeiro lixo. A vontade era de nunca mais pisar naquele maldito lugar. Meu pai foi buscar-me na escola, e ao vê-lo eu desabei. Comecei a chorar um choro tão sentido, tão amargo, que ele ficou preocupado. Perguntou-me o que tinha ocorrido. Mas eu não conseguia dizer. As lágrimas não paravam de jorrar. E não era por orgulho que me calava. As palavras ficaram guardadas na ponta da língua. E sabe por quê? Nesse momento eu recebia um abraço tão forte e acolhedor que esse episódio foi se distanciando da minha mente até tornar-se uma névoa e se dissipar como fumaça de cigarro. Esse foi meu pai. O melhor homem que já pisou esse chão tão sujo.

Eu não tive mãe. Claro que nasci de uma, como todos nós, mas digo “não ter mãe” no sentido emocional. Ela morreu três meses depois de meu nascimento atingida por um raio. Dá para pensar em morte mais estúpida? Meu pai pouco falava nela. Bem, então ela não era grande coisa. Nunca senti sua falta, ele preencheu todas as possíveis lacunas que sua ausência, porventura, deixara. Paremos de falar sobre minha mãe.

Papai morreu. Morreu meu pai. No instante em que colocaram meu pai naquele maldito caixão e o fecharam naquela maldita parede, nuvens negras sobrevoaram minha cabeça e nunca mais me deixaram. Que dor! Pensei que fosse morrer junto. Faltava-me o ar, não conseguia ficar de pé. Foi duro. Muito duro. E continua sendo.

Em parte, é por isso que estou aqui, com uma arma na mão, prestes a arrebentar minha cabeça. Não é fácil perder alguém que se ama. Em português bem claro, é foda. Voce fica sem chão e sem apoio. Não adianta tatear no escuro. É um esforço inútil. Melhor guardar a pouca força que resta para tempos desesperados, para atitudes desesperadas como apertar um maldito gatilho.

Apesar de tudo, consegui sobreviver. “Levanta, sacode a poeira e da à volta por cima” é algo que nunca fez o menor sentido para mim, mas o sol despontava todas as manhãs e com ele as necessidades básicas. Engraçado o que acontece. O mundo não pára só porque voce parou. As pessoas continuam a sorrir enquanto voce chora. Por que chorariam?

Então, a vida foi seguindo seu curso. Eu não tinha parentes com quem contar, tive que me virar sozinha. Pela primeira vez na vida algo ruim acontecia e eu não tinha com quem desabafar. Ele tinha ido embora. Deixou-me sozinha como Daniel na cova dos leões. Estava sozinha para enfrentar um mundo nada amistoso, pessoas famintas, prontas para me derrubar, chupar meu sangue e roer meus frágeis ossos. Eu tinha então vinte anos de idade, mas ao pensar na minha situação, tremia e chorava como uma garotinha.

Que vergonha!

"O MEIO"

Olha ela aí outra vez. É tudo tão fácil para voce, não é? Imagino que sua vida seja como um dia no parque. É só sentar e relaxar. Realmente, algumas pessoas nascem com a bunda virada para lua. Eu não poderia ser uma delas? Nossa! Que inveja sinto daquelas garotas, com suas conversas tão inúteis quanto seus cérebros, vangloriando-se de suas roupas da moda, de sua aparência, de sua popularidade. Enfim, seres perfeitos, condenados a irradiarem suas luzes sobre nós.

Havia uma garota que morava no meu bairrro. Era a prepotência em pessoa. Ela realmente acreditou na estória de que Deus a fez e jogou a forma fora. Ela era tudo que eu sempre ambicionei ser, bonita e popular. Mas que merda de sempre ter que me contentar com as sobras! Isso mesmo. “O que fulano não quer serve perfeitamente em voce”. Já ouvi isso vezes seguidas. Bem, ouvir de fato, não. Mas sempre foi tão clara para mim a minha condição, que nunca precisaram gastar saliva com algo tão óbvio.

Essa garota realmente gostava de me torturar. Sempre quando eu passava pela rua era motivo de chacota. Eu imaginava cá com meus botões “ Mas que diabo! Por que logo eu? “. Ela se deliciava em ver o mal que estava me fazendo. Dava para ver como seus olhos brilhavam a cada investida contra mim. Nunca entendi o fato da sua obsessão em me humilhar, nunca sequer tínhamos trocado palavras.

Eu tinha medo de sair de casa, mas tinha de trabalhar. Eu tinha de me sustentar. Verificava a rua pela janela para ver se ela estava por alí. Quantas vezes cheguei atrasada pelo fato dela estar no ponto de ônibus conversando com suas amigas. Era um verdadeiro inferno. Havia dias em que eu não queria levantar da cama. Para quê? Ser humilhada é algo que não me agrada. Sempre fui uma covarde. Covarde demais para sair sozinha de situações como essa de uma forma corajosa, heróica.

Foi a segunda vez em que pensei que estar morta não era tão mal como pintavam. Pelo menos não teria que aguentar aquilo. A morte nos poupa de coisas bastantes desagradáveis. Mas de boas também. Como acontecimentos bons eram raros, a idéia de morte se tornou algo para se pensar. Quem nunca se sentiu assim? Quando os obstáculos parecem intransponíveis, quando a barra é pesada demais, a idéia de se matar não parece tão mal assim. É uma saída. Covarde, mas uma saída.

O fato de que eu poderia acabar com minha vida e, por conseguinte, com tudo aquilo, dava-me uma sensação de alívio. Já imaginou? Sentir-se aliviada com a própia morte? Mas era o que eu sentia.

Lamentos demais me dão dor de cabeça.

Eu sei, eu sei. Patética a minha vida, não? Quem dera poder contar sobre os meus sucessos, os meus grandes feitos profissionais, as minhas conquistas amorosas. Não posso. Fica para próxima. Se existir uma outra vida, quem sabe. Como eu queria acreditar nisso. Já acreditei em muita coisa, mas agora só existe um grande vazio.

"O FIM"

Sempre tive uma queda por literatura. Eu lia muitos livros. Transportava-me a vários lugares, conhecia várias pessoas. Eu era a heroína, o bandido, a boneca de pano. Sempre escrevi. Mas gostar de ler e escrever não quer dizer necessariamente que voce se tornará um grande escritor. Uma pena eu só descobrir isso algumas semanas atrás. Eu estava absorvida pela idéia de escrever um livro. Um grande romance, diferente de tudo já escrito. Só de imaginar essa possibilidade, meu cérebro fervia. Teria de começar já. Mas antes, a prova dos nove.

Havia um professor de português completamente apaixonado por esse universo. Foi por ele que conheci grandes escritores como Kafka, Dostoiéviski. Grandes poetas como Alvares de Azevedo, Manuel Bandeira. Era a única pessoa com que eu mantinha um convívio saudável. Com ele eu podia simplesmente ser eu mesma. Com ele eu tinha a chance de se natural, sem sorrisos falsos que no fim não ajudavam em nada.

Era uma grande idéia. Escreveria algo para ele. Uma poesia talvez? Sim! Já vislumbrava o rosto dele, iluminado por ter conhecido um grande talento, escondido naquele bairro imundo. Providências teriam de ser tomadas. A dona de um dom desse quilate não poderia ficar junto da ralé. Portas se abririam para mim. Um mundo novo, um futuro repleto de realizações, um nome conhecido e respeitado. Aquela maldita ia se arrepender por ter me humilhado. Rastejaria aos meus pés por uma quota de atenção. E eu a chutaria. Eu a cuspiria. O meu braço golpearia com força, muitas e muitas vezes. A minha presença seria disputada. Muitos holofotes e todos para mim.

Mas, qual não foi a minha surpresa quando mostrei a minha poesia, “ a fina flor da atual literatura ”, e ele não demonstrou qualquer entusiasmo. Os sinos não tocaram. Seu rosto não se iluminou como eu havia pensado. E, para selar com chave de ouro, ele disse que minha poesia era um plágio. Uma cópia da poesia “ Se eu morresse amanhã. “

Aquilo era demais. A vida era ruim, mas eu sempre acreditava que tinha um talento, que tinha um dom. Que algum dia ele se revelaria e todos ficariam pasmados. Era a minha salvação. Tantas vezes acordei feliz embalada por esses sonhos.

Foi um golpe para mim, um grande golpe. O terceiro, diga-se de passagem. Mas seria o último. Já chega! Agora estou com raiva, e é para valer. Estou farta de todos os infortúnios. Se a vida vai ser sempre assim então dispenso. Eu tenho este direito, a vida é minha. Agora acabou, e estou falando sério. Essa não é mais uma de minhas promessas sem valor. Não há mais nada de novo sob o sol.

O que pretende fazer?

Não consegue adivinhar? Logo voce que é tão esperta, que esta à léguas de distância na minha frente, não imagina o que está passando pela minha cabecinha? Ora, isso já passou pela minha cabeça diversas vezes, mas agora estou disposta a botar em ação. Está surpresa? É claro que sim. Nunca imaginou que um dia eu teria coragem para botar em prática o que pensei. Bem, pois sente-se e aprecie o show, colega.

“LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH' ENTRATE”

(Dante)

Eu estou cansada. Sabe quando o cansaço se torna mais difícil de aguentar do que o medo? Contar os acontecimentos mais tristes de minha vida fez surgir em mim uma coragem que estou longe de possuir. Tempos desesperados, medidas desesperadas. Nunca imaginei acabar assim. Um fim deprimente para uma pessoa deprimente. O que mais poderia esperar? Sei que metade dos meus fracassos foram gerados por mim, eu nunca fui alguém confiante, alguém que se esforçasse para atingir seus objetivos. Sempre esperei demais. Este foi meu erro. Esperar algo de alguém como eu? Burrice. Meus sonhos não se tornaram realidade. Ficar sentada esperando o trem das onze realmente foi uma decisão equivocada.

Mas é claro que o mundo teve uma participação especial em tudo isso.Crucial, eu diria. Nunca abriu suas belas asas para acolher uma de suas filhas mais necessitadas.È nisso que dá esperar compaixão. Pois agora não terá do que se envergonhar.

Olho para o céu. Sempre ouvi falar em Deus, um pai disposto a tudo, até entregar o próprio filho para a salvação da humanidade. Quanta besteira! Meu pai nunca me deixaria tirar a própia vida. Agora ele está morto e enterrado. Eu não quero ter nenhum parentesco com um Deus que olha todo este horror e segue indiferente. Um Deus que pouco ou nada se importa. As pessoas sempre estiveram mais preocupadas em dizer como eu vou ao inferno do que me ouvir por dez minutos. Que se fodam todos eles. Seus jeitos não deram certo, agora vou tentar o meu.

O que está esperando?

Espera um momento. Não posso me despedir? Quero olhar pela última vez a minha casa. Tantas recordações. Boas recordações. Por que será que as coisas pioram com o tempo? Ou é tudo ilusão da minha cabeça? Será que realmente estou aqui? Pode ser tudo um sonho, ou melhor, um pesadelo. Talvez a única forma de acordar seja me pondo para dormir.

Hora de dizer adeus.

Eu sei. Estou prolongando demais algo muito simples. Não tenho ninguém para dizer adeus. Há sim! Como poderia esquecer de voce. Sempre esteve comigo nos bons e maus momentos. Mais para acabar comigo do que ajudar. Quer saber? O melhor de tudo isso vai ser não ter que te suportar mais. Nunca mais!

Dane-se sua filha da puta. Agora é a minha vez. Sou a atriz principal, não a maldita coadjuvante. Ai quem dera uma casinha no campo, com girassóis na janela. Sentir aquele alívio inigualável. Papai, ajuda-me. Eu vou ...