Ânsia de Josefina ou A Primogênita

Senti um frio de repente e meio e tanto que vim para cá onde estou a te fazer nestas linhas simples e de compreensão difícil que me chega pelo ar. Começa mesmo assim:

E ela estava à beira do que dizemos “ataque de nervos”.

!!!

Isto acaba de ser o ato criativo que a tomou de assalto em pleno escovar matinal de dentes. Ela olhou a sua imagem refletida no espelho bem à sua frente, ainda com a escova em punho e espuma esverdeada saindo-lhe pela boca aberta de espanto. Estava mais para encantamento, quase revelação do instante: encanto espantado. Tudo isso, simplesmente por que fazia meses que ela não apresentava uma idéia nova à empresa, e sabia do risco que a sua tão precária estabilidade, adquirida precocemente, estava correndo.

Josefina era um tipo incolor e sem grandes aventuras. Nem alta, nem baixa, nem gorda, nem magra, nem bonita, nem feia: ela estava bem no meio dessas coisas. Vinda de família também situada no “meio”, sempre havia sido moça sonhadora e que fazia planos de viagens e visitas a museus ainda ao seis anos de idade, enquanto que a maioria das outras garotas se ocupava em pentear suas bonecas; um alguém inteligente que dedicava horas do seu tempo livre ao mergulho em leituras sobre mitologia e culturas do mundo. Era admiravelmente criativa e, não muito tempo depois de ter aprendido a ler e escrever, começou a produzir historinhas meio fantásticas que fervilhavam no seu crânio.

Há de se falar da sua personalidade, pois Josefina era quase. O que escrevia, aos poucos, deixou de ser historinha e passou a ser tentativa de contato consigo - não necessariamente deixando de conservar o caráter fantástico. Às vezes, descobria o seu peito arfando desse jeito: cheia de conflitos. Lenta, vegetal enraizado, mas que guardava dentro de si uma impetuosidade pronta para a explosão a qualquer momento e sem aviso prévio. Mas a descoberta nunca vinha... E ela reservava para algumas pessoas algo como aqueles ares de salve-me-quem-puder e deus-me-acuda: quando Josefina sentia fome, ficava séria, e seu silêncio inquietava quem estava por perto.

Ela se fazia de intrépida, mas no fundo mantinha seus medos. Não se sentia tranqüila em lugares muito altos, pois do alto ela podia ver além, como já dissera. E depois de pensar um pouco a respeito, acho mesmo é que ela não estava acostumada a viver isto diariamente.

Josefina procurava, já há tempos, o seu próprio além e o das outras pessoas. Quando se arriscava a andar pelo centro da cidade, o risco se tornava duplo, pois no meio de toda aquela gente, acontecia de ela fitar as pessoas bem nos olhos, quase lhes penetrando a alma, em busca dessa coisa toda que a fascinava. Em relação ao além, não me indague qualquer coisa sobre, pois de tão confuso que o era para Josefina, acabou tornando-se para mim também.

Não devo ainda ter dito, mas ela morava sozinha e não tinha namorado. O máximo de contato apaixonado – e platônico – que já mantivera, fora com seu professor de Educação Artística, numa dessas séries fundamentais. Uma coisa inocente, bem a seu modo. Ela desligara-se do amor dessa forma, pois achava o resto tão mais interessante que estar apaixonada e só pensar nele. Talvez, as suas raízes, que pareciam ter vontade própria, não ajudassem muito... Mas totalmente só, na verdade, não morava. Criava um gato meio laranja, fujão e que obrava todo o banheiro. Os dois até que se davam bem.

O que fazia era publicidade: tentava bolar frases que fisgassem a qualquer um pelo que trouxesse dentro de si. Algumas até pareciam veredictos, quase axiomas para a vida. Criara frases meio e mal famosas, como “Se é para dar um cinto para o seu pai, dê um sinto-que-te-amo” e “É hora de queimar o avental”, no ano seguinte, para uma revista feminista.

Agora que está quase tudo e só metade esclarecido, voltemos para o banheiro, onde deixamos Josefina nos esperando com revolta complacente, imanifestável, pois estava estática.

!!!

Ela fitava o seu reflexo no espelho coberto de vapores sem nem ao menos se notar. Um fechar e abrir das pálpebras bastaram para que ela despertasse dessa espécie de transe em que se pusera, organizasse as idéias e, só então, descobrisse a necessidade de anotar antes que a idéia se perdesse. A espuma de creme dental já escapara até o conjunto especialmente escolhido para aquele dia, fazendo com que Josefina praguejasse alguma coisa baixinho, em um ato ousado. Largou o instrumento-escova na pia – torneira ainda aberta – e saiu voando para a sala, onde ficava a sua mesa com seus papéis e tudo o mais. Ela não apreciava esquecer dessas suas idéias “reveladas”, pois eram sempre urgentes. Ela mesma estava urgente; toda ela gritava um grito que acabava sendo abafado pelo corpo.

No caminho entre banheiro e sala, Josefina pôde-se ver novamente, de relance, num espelho da estante: estava com espuma já espalhada até o início do pescoço. Essa imagem tresloucada lhe provocou alguns risos sinceros. Logo que chegou ao local, jogou-se tão impetuosamente na cadeira giratória que acompanhava a mesa que aquela chegou mesmo a ceder um pouco. À sua frente, umas folhas em branco, alguns livros e uma caneta, para completar a cena. Constante renovação do afã. Ainda houve tempo para que algumas gotas da tal espuma malfeita pingassem na borda do papel, mas quem realmente estava pingando era Josefina: gota a gota, não se sabe bem por quê. O som que vinha daí ecoava na sua cabeça e misturava-se aos pensamentos, em maremoto. Neste exato momento, algo de surpreendente se passava em Josefina; algo que acredito se traduzir nisto: ela estava beirando o que eu chamo “si mesma”...

Rosiel Mendonça
Enviado por Rosiel Mendonça em 23/07/2007
Reeditado em 24/07/2007
Código do texto: T576909
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