A COR DO HOMEM

Uma mulher fofocando no telefone:

MULHER: Quem me contou isso foi a Yolanda que mora no final da rua. É sobre a “saia justa” que eles ficaram por conta do novo namorado da filha.

Não menina! Quem tá namorando é a outra, a Irene. Isso mesmo, aquela alta, bonitona de olho claro e que estuda engenharia. A outra, a irmã dela, Iara não quer saber de nada. Não toma juízo. Ela até não engravidou daquele marginal que nem quer saber dela e nem do filho?! Coitado! Essa Iara é um caso perdido, muito diferente da irmã. Nem parece que são gêmeas. O pessoal aqui da rua diz até que já viram ela fumando maconha. Eu nunca vi. né. Mas foi o que me contaram. Só estou dizendo o que ouvi.

Então! Mas como eu estava dizendo quem está namorando é a Irene. Diz a mãe dela que a moça conheceu o rapaz pela internet. Você acredita? E ele é um “rapaz de cor”, mas a menina já tinha encontrado com ele algumas vezes antes de apresenta-lo a família. Vou te contar essa história conforme a Yolanda me contou...

****

A visita já estava combinada desde o meio da semana. Depois de dois meses de namoro a Irene finalmente ia apresentar o rapaz para a família. Combinaram um almoço de domingo.

Quando ele chegou foi quase constrangedor tentar disfarçar a surpresa. Ninguém na casa sabia que o homem era negro. Parece que a moça não achou que era uma informação relevante. Quando a mãe perguntava alguma coisa ela só dizia que o namorado era inteligente, companheiro, honesto, etc. Diz a Yolanda que o máximo que eles sabiam da aparência do rapaz é que ele é tão alto quanto ela. Você sabe, a Irene é um mulherão. Deve ter um metro e noventa. Sempre achei que ela devia ser modelo. Tão bonita ela.

O rapaz se apresentou, sentaram, conversaram, almoçaram juntos. Ele pareceu mesmo muito simpático e esforçado. Estuda direito e pensa em ser juiz.

Foi quando a Iara chegou dá rua com o filho Selton de 4 anos. Assim que entraram o visitante puxou conversa com o menino. Depois de algumas brincadeiras o menino falou:

SELTON: Mamãe o homem é preto.

MULHER: Verdade! Sei lá de onde o menino tirou isso. Sabe como são essas crianças! Muito sinceras. Acho que o menino nunca viu um negro. Pudera! Naquela família só tem loiro de olho azul. O que eu sei é que a Yolanda disse que ficou morrendo de vergonha. Tentou corrigir o menino:

YOLANDA: Não querido! Não fale assim que não é educado. Você deve dizer “homem de cor” ou melhor, negro.

MULHER: Nisso o visitante, o nome do namorado da filha dela é Romualdo. Enfim, o tal do Romualdo falou:

ROMUALDO: Não! Tudo bem. Eu não me importo. Na verdade prefiro até ser chamado de preto mesmo. Afinal é essa a minha cor. Negro é minha raça. Acaso você alguma vez se sentiu incomodada de ser vista como branca?

YOLANDA: Claro que não.

ROMUALDO: Então! Se fosse pra dizer a sua raça deveria chama-la de caucasiana. Como você não se incomoda em ser chamada de branca eu também não me incomoda de ser chamado de preto. Tentar ignorar essa premissa é como ver um homem sem pernas e fingir que ele as tem, ou ainda, ver um cego e fingir que ele enxerga. Não tem sentido. Sou muitas coisas. A cor da minha pele não me define, mas faz parte do que eu sou.

MULHER: A Iara que até então estava só ouvindo a conversa resolveu falar:

IARA: Eu sempre achei que vocês preferiam ser chamados de negros. Eu tenho uns amigos que...

ROMUALDO: Sim, pode ser. Na verdade não existe um padrão. É o modo como a pessoa se identifica. Esse conceito todo de raça é muito complexo. O que posso dizer pra resumir é que o racismo sempre existiu. Desde os egípcios e os gregos já havia. Os egípcios com os hebreus e os gregos com os bárbaros que era qualquer povo que não fosse grego. Mas quanto a cor sabiam que existe até mesmo gente que se diz azul?!

IRENE: Como assim, amor?! Quem que vai dizer que é azul?

ROMUALDO: É verdade! No senso demográfico quando eles analisaram a questão étnico-racial os dados entraram como “outros”. Acontece que na pesquisa não há opções, portanto a cor declarada é a que entra no registro. Se a pessoa falar que é rosa ou verde é essa cor que fica anotada. Provavelmente quem se diz azul é alguém de saco cheio de ter que responder o obvio de sua cor de pele preta, imagino eu. Quanto as cores, um branco pode ser galega, clara, bege, pardo entre outras, assim como um preto ser contabilizado como moreno claro, moreno escuro, mulato, chocolate, etc. São várias possibilidades de identificação, dependendo da cultura de cada região.

IARA e IRENE (juntas): Nossa, que interessante!

ROMUALDO: Quando se fala negro essa palavra traz uma conotação linguística e histórica muito pejorativa, por exemplo, temos a palavra denegrir para se referir a “sujar uma imagem”; temos ainda: “peste negra”, “lista negra”, “mercado negro”, “magia negra”, “ovelha negra”, “navio negreiro” como algumas palavras no qual o negro dá uma ideia negativa. Mas por outro lado temos o preto que na maioria das vezes dá a idéia de algo positivo. Temos: “grana preta” que é muito dinheiro; “fuscão preto” que é motivo de orgulho para o dono; “feijão preto” que é saboroso para a feijoada; “café preto”, enfim...

YOLANDA: E quanto a dizer que “a coisa está preta” ou “perola negra”?

ROMUALDO: Claro que existem exceções, mas de modo geral a palavra “negro” é usada para coisas negativas e “preto” para as positivas. Estou expondo só uma questão semântica, de modo algum se pode generalizar e dizer que alguém que se intitula como negro tem algum problema de autoestima. Seria ignorância pensar isso. Como eu disse antes é complexo esse assunto. Quanto a mim, prefiro ser identificado como preto mesmo.

MULHER: Depois disso a Yolanda disse que se sentiu até agradecida pela gafe do neto, pois começou a refletir sobre coisas que nunca pensou.

E quanto ao rapaz, parece que a Irene está muito feliz. A Yolanda acredita que ela encontrou o homem certo e espera que a Iara um dia de a mesma sorte.

FIM

P.S: esse texto foi livremente inspirado no depoimento de um afro-descentente quando questionado se deveria ser identificado como preto ou negro.

As informações sobre o senso demográfico são de responsabilidade do autor.