O PALHAÇO E O ORADOR

Dois homens morreram num mesmo dia. Um deles era um orador famoso, célebre por jamais haver perdido um sequer dos debates de que participara. O outro era um palhaço de circo. Quando chegaram diante dos portões do Céu, São Pedro veio recebê-los. Junto dele, carregando as pesadas chaves do Paraíso, vinha um anjinho com ar moleque. Então, São Pedro lhes disse, com visível preocupação:
– Meus filhos, o Céu está lotado. Só há mais uma vaga. Infelizmente, um de vocês terá de ser mandado para o inferno. Na falta de outro critério para decidir, resolvi que deixarei entrar no Céu aquele que se mostrar o mais engraçado. Portanto, peço-lhes que me falem sobre a morte, sobre sua morte. O que se demonstrar mais divertido será o que terá o direito à morada bendita. – Olhou para o palhaço e disse: – Filho, você começa.
O palhaço estremeceu. Fazer piada com a morte? Logo ele, que ainda vinha abalado com as circunstâncias que lhe haviam ceifado a vida terrena? Bem, mas o que era a morte senão a última parte da própria vida? E a vida também é alegria. A sua, por exemplo, fora sofrimento e miséria, mas também fora alegria. Fechou os olhos, concentrou-se e principiou:
– Bem, meu querido São Pedro, eu vinha por uma rua cheinha de pedra, nada contra o seu glorioso nome, viu? Mas daí eu vinha por uma rua cheinha de pedra e tropecei numa delas. Caí sentado. Quando ia me levantar, vinha uma carroça puxada por um burro. Era um burro muito bonito, me lembrou do dia em que eu nasci, eu berrava pra valer. Aí, minha mãe disse: “pobrezinho, tá berrando feito um porco sangrado, parece um leitãozinho.” Daí, veio a parteira e respondeu: “olha, dona Maricota, a senhora me desculpe, mas, magro desse jeito, com essa cara comprida, e, ainda por cima, filho do seu marido, coitado, bom, trabalhador, mas xucro, tá mais pra burro do que pra leitão.”
São Pedro continuava muito sério, mas o anjinho começou a rir.
– Daí, veio a carroça e me atropelou – continuou o palhaço. – E o pior não foi isso. O pior foi que, quando a carroça passou por cima de mim, o burro me largou um brinde no meio da careca.
O anjinho deu uma gargalhada. São Pedro permanecia com o rosto imóvel.
– Daí, me levaram pro hospital. Só que, quando eu cheguei no hospital, em vez de me levarem pra tal de uteí, a pobre da moça, toda atrapalhada, acho que era o primeiro dia dela, ou então vai ver que tava mesmo com serviço de mais pra uma só criatura de Deus, a moça me mandou pra maternidade. A enfermeira da maternidade, coitada, tinha uma cara de cansaço que me doeu de ver. Ouvi dizer que ela estava há mais de dois dias trabalhando sem parar, porque faltava gente no hospital. Bem, quando eu entrei lá, ela nem olhou pra minha cara, se bem que, com a soneira que a pobre tava, perigava confundir alho porró com melancia madura, quanto mais homem com mulher. Me botou deitado na maca, com as pernas abertas, e disse que eu fizesse força... Bem, aí eu morri.
O anjinho ria muito, mas São Pedro permanecia impassível. O palhaço sentiu-se gelar. Mas São Pedro apenas lançou-lhe um olhar bondoso e dirigiu-se ao célebre orador:
– Agora, você, meu filho.
O orador também se assustara com a idéia de discursar sobre a morte. Mas, o que era a morte, senão o derradeiro debate? E, assim como em todos os debates que vencera, aquele ele também venceria. Empertigou-se, olhou com desprezo para o palhaço e começou:
– Excelentíssimo Senhor São Pedro, padroeiro dos portões do Céu, que em tão nobre cargo tão merecidamente se encontra. Excelentíssimo Senhor Anjo. Nobre contendor. – Pigarreou. – Minha história de morte não se fará completa sem breve recapitulação acerca de minha história de vida. Ao contrário de alguns, que nasceram dando ao mundo mal-educadas saudações, eu nasci num hospital de luxo. Quando me viram, acolheram-me como a uma dádiva, se bem que, para quem passa fome ou para quem se esfalfa nas lidas do campo, um leitão ou um burro com certeza seriam acolhidos com uma dádiva.
São Pedro permanecia firme. O anjinho começou a rir.
– Durante os belos e vitoriosos anos de minha existência sobre a terra, minha platéia foi das mais qualificadas. Nunca fiz rir senão brindando a mente de meus espectadores com os mais sutis lampejos de raciocínio. Ao invés, naturalmente, daqueles que, para fazerem rir, precisavam expor-se em maquiagens e trajes ridículos. Quando se deu o momento fatídico de minha transição, veja bem, São Pedro, eu estava elaborando uma nova tese sobre a atual situação política. Agora, não me pergunte em que alguém que simplesmente não deve saber o que é Política estaria pensando ao tropeçar numa pedra. Aliás, se é que certas pessoas, capazes de tropeçarem em pedras e de receberem as cordiais saudações – ou deverei dizer intestinais saudações – de um jumento são mesmo capazes de pensar. Mas é provável que, do imo de um animal tão honesto quanto um burro, não haja saído mais do que um souvenir para com quem considerou seu semelhante.
O anjinho deu uma gargalhada. São Pedro não movia um músculo da face.
– Bem, o fato é que sofri um lamentável acidente de carro, o qual resultou nesta minha confortável situação. Pois se sobre muitos doutores já me fiz vencedor, não creio que um palhaço que, de tão inteligente, chegou a ponto de ser atropelado por um jumento, possa-me causar a mais leve das preocupações. Aliás, quando morre um orador, o mundo perde brilho e perde inteligência. Inteligência esta que, seguramente, faz tanta falta agora na terra quanto fazia na mente de meu opositor, quando era vivo. Por outro lado, Excelentíssimo São Pedro, quanto perde o mundo cada vez que morre um palhaço!
O anjinho ria bastante. Não só pelas palavras, mas pelo ar irônico que o orador lhes emprestava. São Pedro, porém, suspirou profundamente. Então, disse ao palhaço:
– Filho, pode entrar. A vaga é sua.
O orador arregalou os olhos.
– Mas como, se meu discurso foi brilhante?
– Eu não queria saber quem era o mais brilhante – redargüiu São Pedro. – Eu havia oferecido a vaga a quem se demonstrasse mais engraçado.
– Mas... São Pedro! protestou novamente o orador. – O senhor se manteve sério tanto no meu discurso quanto no do palhaço! E o anjinho – apontou com fúria para o pequeno querubim – riu tanto de um quanto de outro!
– É, meu filho – respondeu São Pedro, com um olhar triste e complacente. – Mas ser engraçado não significa apenas fazer rir mais, mas também fazer mais pessoas rirem. Enquanto o seu colega palhaço falava... Você sorria. E, enquanto você, meu filho, estava discursando... O palhaço chorava.

Moral da história: sarcasmo pode ser uma prova cabal de inteligência, mas não de sabedoria...

Julho/2007
Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 25/07/2007
Código do texto: T578804