Câncer
 
 
"O corpo sou eu. O corpo não existe! Ou melhor, o corpo existe apenas como ideologia, para impedir a expansão dos elementos livres e produtores de riqueza."
 
A ciência evoluiu muito no campo visual (estão aí os telescópios, microscópios etc. e também os livrinhos de biologia, que têm sempre desenhos minuciosos de células: o núcleo, aquela serpentina colorida, é quase um popstar; e os sons não cabem nos livros...); mas só recentemente percebeu que os sons são tão importantes quanto as imagens.

Depois de anos e anos investindo apenas nesses aparatos com super-lentes e câmeras, um cientista brasileiro conseguiu atrair investimentos da indústria fonográfica (que estava desesperada para arrumar um jeito de voltar a crescer) para construir um aparelho capaz de captar e analisar o som produzido pelas células e seus componentes (núcleo, mitocôndrias etc.). Mas não se preocupe, leitor: evitaremos - na medida do possível, é claro - os nomes técnicos: que se danem os especialistas! (A ideia aqui é falar ao maior número de pessoase e não dá pra fazer isso usando nomenclaturas técnicas e inacessíveis; quando for impossível evitar palavras complexas, tentaremos explicá-las). 

Bom, como ia dizendo, um cientista brasileiro, de São Paulo, Júlio Ipaktex, com o tal investimento, conseguiu criar o maravilhoso fonoscópio intracelular, que preto no branco quer dizer: microfone capaz de gravar os mínimos sons emitidos pela estrutura celular e por outras unidades morfológicas, estruturas que, embora não sejam células, compõem o organismo.

Após testar o aparelho, com sucesso, em pés de feijão, goiabeiras, ratos de laboratório, porcos e chipanzés (nessa ordem), ele o testou nele mesmo e a conclusão da pesquisa não poderia ser mais inusitada. Depois de anos e anos de ditadura das imagens (é uma tremenda obsessão científica ficar filmando tudo quanto é pedaço do corpo! parece que só temos olhos! e as orelhas? E os narizes? Do tato nem se fala, o coitado anda em desuso, desqualificado, a pornografia é visual – os puteiros devem estar, como a indústria fonografia, em dificuldade...); então, voltando à explicação: depois de anos e anos de ditadura das imagens, Julio Ipaktex descobriu que o som produzido pelas células pode explicar boa parte das doenças, embora ele ainda não tenha conseguido desenvolver meios de interferir nos processos patológicos e curar as tais doenças.

Pasmem! O cientista descobriu que as células falam como nós! É claro que por uma linguagem diferente, que não temos a pretensão de explicar aqui (isso demandaria muitas e muitas linhas e pra falar a verdade, eu mesmo não entendi direito como funciona), mas que, segundo Júlio, é perfeitamente passível de decodificação, tendo sido inventado inclusive um programa de computador que traduz a língua celular (e intracelular) simultaneamente para o inglês e depois para o português e demais línguas. O fato é que o Dr. Ipaktex, Phd em ponta de cílio de locomoção de células do período cretáceo, desvendou o mistério de uma das piores doenças da atualidade: o câncer.

Na verdade, muitas doenças poderiam ser desvendadas pelo método revolucionário; porém, como o superdoutor recebeu mais grana dos laboratórios interessados no estudo do câncer, ele se concentrou nessa moléstia. Depois, se for financeiramente viável, ele poderá – mediante o pagamento dos seus direitos (isso se ele já não os tiver cedido prum laboratório qualquer – dizem que já houve propostas) – deixar que outros cientistas estudem outras doenças com a sua invenção.

Conforme o estudo do eminente cientista, o câncer nada mais é que o ápice do individualismo celular. Ouvindo os diálogos das células – e também os monólogos (elas também falam sozinhas obviamente) -, ficou claro que o câncer é um surto de individualismo, no qual determinada célula ou grupo de células, cheias de si, resolvem se multiplicar desordenadamente e se espalhar pelo organismo – desconsiderando completamente a importância das demais, desconsiderando o equilíbrio entre as partes para o funcionamento do todo.

A fim de explicar melhor o fenômeno, transcrevem-se partes de diálogos travados entre célula cancerígenas com células saudáveis. De acordo com uma célula individualista de um homem velho:
“O corpo não pode impor seus poderes a todos; o corpo não pode nos oprimir, cercear nossa liberdade! Esse discurso de controle externo, de um centro de poder para decidir quem deve crescer e quem deve aguardar é um absurdo, é um crime contra a liberdade. Se nós estamos fortes e podemos nos expandir, por que nos deteríamos? O corpo sou eu!
- Você está louca! O corpo somos todos nós. Eu viajo por todo canto: conheço a necessidade do coração, do intestino, da pele, do cérebro.... – respondeu uma hemácia. – No que depender de mim, vocês só entram na corrente sanguínea mortas! Sem o corpo como unidade, vocês morrerão!
- O corpo não pode querer obstar o crescimento, o desenvolvimento – o corpo deve se meter só onde é chamado e não ficar se intrometendo com os bem-sucedidos agentes livres!”, retrucou a célula cancerígena e individualista. 

E por aí vai...
Vejamos agora como são células de um corpo mais novo:
“- Temos que expandir, pois da nossa expansão dependem todos os outros! – grita um grupo de células egocêntricas.
- Não pode ser assim, o corpo precisa de equilíbrio - respondem as células de um órgão vizinho. – Como o corpo vai funcionar se cada parte ignorar as demais?
- Corpo, o que é isso? O corpo não existe! Ou melhor, o corpo existe apenas como discurso, ideologia, para impedir a expansão dos elementos livres e produtores de energia. Existem as células, o resto é o resto. Se nós, células, nos expandíssemos livremente, tudo melhoraria! O corpo existe só para sustar a livre expansão dos produtores de energia.
- Só se for a sua energia! O corpo agoniza mas ainda existe! E mais: além do corpo há os outros! Mas isso é demais pra quem sequer consegue ver o corpo do qual faz parte...”

Bom, não vou ficar transcrevendo um monte de diálogos e monólogos, nos quais o tema se repete; esses que transcrevi já servem para ilustrar o que é o individualismo celular, mal que gera o câncer. Se um grupo de células cisma que é mais importante que todas as outras e resolve se multiplicar e se propagar sem limites o resultado não pode ser outro. Os médicos não sabiam a causa da doença justamente porque não escutavam as células; ficavam apenas assistindo a balbúrdia, e os métodos que empregavam para tentar controlar a situação acabavam atingindo não só as células egoístas mas também todo o organismo, inclusive as células preocupadas com o bem comum. Um verdadeiro disparate!

E demoramos tanto tempo pra descobrir isso porque vivemos a ditadura do olho; como afirma o aforismo, “uma imagem vale mais que mil palavras.” Mas, como estou provando - e até aqui só usei 1042 palavras -, palavras podem valer muito mais que imagens. Lanço um desafio: quero ver quem consegue com uma imagem falar tudo que eu disse até aqui, usando 1042 palavras.

Eu sei que há pinturas que dizem muito e textos que dizem pouco, mas daí não se pode concluir que palavras valham menos que imagens. Há livros que não valem uma imagem e filmes (imagens mais imagens, cenas e mais cenas) que não valem uma palavra. Ou seja, não há como afirmar o que vale mais em tese: só analisando o caso concreto, colocando lado a lado palavras e imagens para saber o que deverá prevalecer - e o sujeito que julgará também deve ser levado em consideração.

Muitas vezes o sujeito é subestimado e isso é uma imbecilidade; porque um determinado observador pode enxergar uma imagem de modo que ela represente muito e outro pode não ver nada no mesmo objeto. (Queria falar sobre arte aqui, mas ia dar uma volta enorme e confesso que não tenho muitos subsídios para tanto). Como é óbvio, o sujeito/leitor também é desconsiderado quando se trata de palavras, textos.

No fim das contas, o que deve ficar claro é que uma imagem pode valer ou não mil palavras e uma palavra pode preponderar sobre mil imagens; deve-se pois verificar caso a caso o que é mais relevante, o que diz mais. O que não pode se perpetuar é essa ditadura da imagem! Chega de assistir! Vamos ouvir - e também falar, é claro!

Bom, até explicou-se que o Dr. Ipaktex desenvolveu uma nova técnica que rompeu com os exames de imagens e assim tornou viável a análise das causas do câncer. Porém, inda não se falou do tratamento; na verdade, até então não há um tratamento definido mas apenas testes, pesquisas.

O cientista já conseguiu contatar as células, simplesmente usando o caminho inverso do que fez para escutá-las; ele transforma português em inglês e após, empregando o seu próprio aparelho converte a língua em sons celulares, tendo desta forma estabelecer um diálogo com as células.

No entanto, muitas delas - principalmente as doentes - não conseguem entender de onde vem a voz que lhes fala e portanto a ignora, razão por que mesmo conseguindo falar com as células um tremendo abismo se impõe. Não é tão simples se comunicar: a indiferença, a cegueira, a alienação imperam.

As hemácias são em geral receptivas, na medida em que são mais conscientes do todo, do corpo, uma vez que circulam e vêem toda estrutura. Todavia, em organismos adoecidos a mobilidade das células sanguíneas se converte em fator destrutivo. Isso porque essas unidades morfológicas (hemácias não são células) usam sua fluidez, capacidade de viajar pelo corpo como meio de se estabelecer onde lhes convém, ignorando as necessidades de outras células. Explicando melhor: quando as hemácias são egoístas, vão aonde bem entendem e ali ficam enquanto podem sugar, crescer; depois, viram as costas e largam aquele órgão na miséria.

(Embora eu não tenha achado - procurei muito pouco, admito - nenhuma relação etimológica comprovada, cismei que o termo hemácia tem a ver como Hermes/Mercúrio; sugiro até que o vocábulo mais correto seria hermácias ou hermínias e não hemácias. É que Hermes/Mercúrio, de pés alados, ágil, flexível desempenhava entre os deuses e entre esses e os homens justamente o mesmo papel que as he[r]mácias desempenham no corpo, esse leva e traz constante.)

Outro ponto relevante da pesquisa é que por mais afetado que esteja o organismo, sempre há um grupo de células que se preocupam com o todo - até porque a manutenção do todo é a proteção de cada indivíduo - e desejam ajudar no processo de integração dos órgãos, no restabelecimento de uma unidade saudável.

Por isso, um grupo de psiquiatras sugere que a solução para o câncer seria treinar essas células benevolentes para agirem como analistas, a fim de evitar o surto de individualismo e megalomania. Para tanto, recomendam os médicos que as células abertas ao diálogo passem por um treinamento específico, no qual se lhes ensina como lidar com as células egoístas. Não chega a ser uma faculdade de psicologia; podemos classificar com um curso intensivo cujo objetivo é ensinar técnicas simples mas eficazes para tentar conter o processo expansivo e destrutivo.

“Treinar células que estão fisicamente próximas dos pacientes é crucial, na medida em que a identificação entre os sujeitos catalisa o processo terapêutico”, afirma o Dr. S. Duerf. “Como as pesquisas ainda estão no início, não podemos afirmar se o tratamento funcionará; mas tudo indica que sim”, completa.

Outro psiquiatra, o Dr. Zotap, insiste que o problema deve ser atacado em várias frentes:
- Não há como negar que as células sofrem das mais diversas patologias. Tive a oportunidade de escutar gravações de diferentes grupos celulares de um homem supostamente saudável; para minha surpresa, descobri que as células do pâncreas dele sofriam de depressão; algumas inclusive afirmavam que não tinham razões para viver (diziam elas: “não há corpo, não há nada. Não quero trabalhar, não quero me mexer, não há sentido....”). Isso é grave! Pode ser que daqui a algum tempo, o pâncreas simplesmente pare de funcionar; por isso, me parece conveniente escutar todos os órgãos e tentar reverter processos como esse.

Outra equipe, de sociólogos renomados, apesar de divergência (há até o momento nove correntes distintas sobre o tema), entende que a melhor maneira para deter o avanço desordenado seria conscientizar as hemácias (espécie de imprensa corporal, nesse constante leva e traz) a promover a eleição de representantes de todos os órgãos, para que esses se reúnam e discutam sobre o bem comum.

“O cerne da questão é sem dúvida a alienação: os segmentos ignoram a existência e os anseios dos demais, o que incrementa a fragmentação e conseqüentemente a crise. Tudo leva a crer que só os grupos afetados possam romper com a desordem estabelecida; o processo no entanto pode seguir a via democrática ou a via revolucionária”, explica o Dr. Z. Namaub.

Se o câncer no início já é um problema, quando começa a metástase (do grego metástatis: mudança de lugar, transferência) a situação fica mais grave ainda; é como se o caranguejo ganhasse asas, transformando-se num câncer alado. Nessas circunstâncias, o processo fica quase irreversível. Quando a neoplasia (neo: novo mais; plasia: formação) está estagnada, presa a um único local, os danos são menores, porque querendo ou não as células que interagem diretamente podem exercer alguma influência a fim de sustar o desenvolvimento.

Porém, quando se inicia a metástase, a neoplasia se liberta das amarras inerentes a determinado espaço físico; vai pois aonde bem entende e faz o que deseja, sem sofrer as pressões locais. O caranguejo alado, com fortes pinças e asas, uma mistura bizarra de Minotauro e Hermes/Mercúrio: violento, destrutivo e rápido, móvel. Quem dera pudéssemos prendê-lo num labirinto, acorrentá-lo ao solo.

Deixemos de lado as teorias. Há outras conseqüências relevantes de que desejamos falar: a indústria fonografia está se reerguendo. Infelizmente, as pessoas não parecem ter entendido muito bem os diálogos celulares, mas essa estória toda acabou criando uma moda. Por incrível que pareça, as células, como os homens, fazem música! É isso mesmo: fazem música e têm até bandas!

E, como não poderia deixar de ser, a industria fonográfica está conseguindo se reerguer vendendo pela internet, a preço de banana e às pencas, as tais músicas celulares. O melhor de tudo é que não há direitos autorais (como se isso pesasse no preço cobrado pelas grandes gravadoras!) nem custos com estúdio etc.; é lucro puro, sem ônus, uma vez que as gravações já saem prontas para serem comercializadas.

O Dr. Júlio Ipaktex já recebeu algumas propostas milionárias para vender a tal máquina e já há notícia de que os japoneses estão desenvolvendo um aparelho que por outros meios chega ao mesmo fim. Alguns afirmam que o cientista está apenas esperando uma proposta mais alta para vender o seu invento, tendo em vista que a industria fonográfica exige 150% do que investiu, além do direito de usar o invento do jeito que bem entender.

Desejamos sinceramente que encontrem a cura do câncer - assim como de outras doenças - e que a invenção seja utilizada da melhor forma. Mas não temos muita esperança de que isso mudará significativamente as coisas: porque sabemos que há muitos abismos entre a capacidade de ouvir e a compreensão efetiva do que é dito.