Vida, desesperança e Marly

Algo como ela e todo o seu corpo magro e escuro observavam a rua movimentada, carros de um sábado à tarde. Certamente que mantinha uma inquietude sofrida por debaixo da pele murcha, percebia-se só de fitar os seus olhos. Estava sentada numa cadeira baixa, daquelas de praia; tinha um cigarro entre os dedos e um copo modesto ao lado, repleto de cerveja. Vestia-se feito uma jovenzinha sem-pudores: um calção rosa curto e uma blusa de alça, meio despencada para o lado, de tão magrinha que era. Aquela era uma cena de fome. Ao fundo, tocava uma música bem dançante, acho que um forró sem-motivo. E ela ainda se arriscava, mexendo-se aqui e acolá no ritmo da música. Às vezes, conseguia acompanhar; outras vezes, parava para mais um gole necessário a tudo aquilo. Outra das cenas: ela esticando a mão morta e cheia de ossos para o copo já quase vazio. Pensei que se ela fosse abraçada com um pouco mais de felicidade por alguém, as coisas que havia dentro dela se quebrariam em mil pedaços barulhentos.

A neta era a menina sentada à sua frente. Esta sim, jovem, e que se fosse ela a fazer aquelas coisas, ao invés da sua avó, não chamaria tanto a minha atenção. Ela olhava o nada que havia na esquina próxima, o bar. Homens feios, chatos e chamando palavrões; carros passando. Parecia não se interessar muito pelo que acontecia, deixando-se mesmo perder por entre as moléculas de ar que estava prestes a ingerir. Por vezes, dilatava as narinas tentando aspirar algo mais profundamente que não fosse o bafo da velha que chegava até ali. D. Marly, descuidada, realmente cheirava ao suor de ontem e à imundície de hoje e sempre. Tossia, tossia. Às vezes, despertava até mesmo a neta do seu sono acordado com uma de suas tosses secas e agoniantes de se ouvir. Mas Cleo ainda era forte, ainda.

Era somente ela e D. Marly na casa. Nem sempre conseguia prestar atenção a tudo, pois trabalhava durante a manhã até à tarde, e ainda estudava à noite. As duas se mantinham com o seu salário-pouco de doméstica, e aqueles sábados eram os únicos dias em que a neta olhava a avó. Era o dia de D. Marly, que o aproveitava bem ao seu modo frágil. Percebi que a desgastada senhora tentava, a todo custo, resgatar alguma coisa do que já vivera, ou não. No caso do não, ela quereria viver uma época tardia, num período de sua vida que beirava a morte a qualquer minuto, ainda mais nas suas condições. E acredito que a neta bem sabia disso.

Quem passasse por ali e visse Cleo junto de sua avó, diria que a menina estava até serena por demais: mão no queixo, aquela contemplação e tal e tal. Mas por dentro era como se estivesse prestes a atravessar uma muralha de chamas: ela não sabia o que havia depois. Até que D. Marly jogou fora o cigarro, num gesto displicente, e deu um peteleco na garrafa vazia de cerveja, derrubando-a no chão, em demonstração à neta de que a bebida já acabara. Cleo ainda tentou: “vozinha, já chega, vamo entrar...”, mas a velha D. Marly resmungou alguns palavrões, dizendo com isso que a menina deveria ir logo buscar outra garrafa no bar de alguma esquina desencontrada. Ah. Foi o que ela disse. Um longo e prolongado suspiro... Quando voltou, a velha já estava com a cabeça tombada para o lado, entre o sono e o forró que insistia em continuar tocando. Assim que a neta chegou, D. Marly abriu os olhos com tanta força que deve ter chegado mesmo a doer, pois soltou um gemido sofrido. Cleo ia servir a coisa amarela no copo da mulher quando esta tomou a garrafa da sua mão, querendo dizer: “eu posso fazer isso sozinha”. Como já não estava tão sóbria assim e sem força alguma na mão, deixou a garrafa escapulir e partir-se estrondosa no chão, espalhando aquele som ácido. “Sua vadia, imprestável, coisinha ruim... eu não... eu...”, foi o que disse, embolando-se toda. Pareceu estar muitíssimo indignada com o que acontecera, e coitada de Cleo. A menina balançou a cabeça, realmente sentindo pena daquela senhora sem mais nenhuma das estruturas que porventura conseguira alguma vez na sua vida. O que fez? Segurou firme no braço da avó e a ajudou a levantar-se, junto com aquela sua ossada que carregava desde que nascera e, desde então, condenada àquele fim feio. A velha já estava com os sentimentos tão confundidos e misturados por causa da embriaguez, que simplesmente se deixou levar pela neta. Foi com dificuldade que se levantou do trono decadente à beira da calçada, como se não pudesse mais suportar o peso daquele crânio formado de cabelos indecisos, entre o preto e o branco-morte. Ela toda já atingira tal grau de coisa pesada que quase não se suportava mais. De repente, quis jogar-se no chão, ali mesmo, na frente dos vizinhos e de outras pessoas que passavam pela rua. Foi quase impossível Cleo não se sentir envergonhada diante daquele acontecimento, mas como disse, dentro dela ainda permanecia algum resto de força e que a acompanharia durante o viver dos seus dias repletos de incertezas. A força necessária para continuar a viver, pois era preciso; ela sabia como ninguém disso. Jogou o braço de peles caídas da avó por cima de seu ombro e assim, em passos arrastados e sob o olhar curioso daqueles outros, Cleo foi andando em direção a casa. Ela sabia, no entanto, desde que a mãe fora embora com o padrasto, que aquela não era a sua casa; não pertencia àquilo. E lembrava da senhora Marly...

Rosiel Mendonça
Enviado por Rosiel Mendonça em 28/07/2007
Código do texto: T583094
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