A ILUSÃO DA VIDA

I

Não era uma situação muito comum. Mas bastou um milésimo de segundo para a rotina desabar e eu perder de novo o controle. Como sempre eu apenas estava no lugar e na hora errada. E, o pior de tudo, é que não tinha nenhuma desculpa para estar lá. Alguns idiotas chamam isso de destino. Eu chamo apenas de caos , incerteza e um bocado de azar.

Agora só me restava lidar com as consequências daquela travessura do acaso. O cenário não era muito simples:

Acabara de bater na traseira de uma ambulância enquanto levava minha filha de seis anos para o hospital. Isso porque acidentalmente ela havia caído do playground enquanto me distraia ao telefone discutindo com a mãe dela. Eu mesmo não me sentia muito bem. Estava enfrentando uma crise de ulcera. Era , definitivamente, um dia ruim.

Mas, diferente de todo mundo, eu tinha um recurso único para resolver problemas. Bastava mandar uma mensagem de voz para o meu irmão gêmeo e ele me substituía. Tínhamos personalidades opostas. Enquanto eu era desleixado, mal humorado e possuía um talento especial para fazer merda ou simplesmente dizer a coisa errada, meu irmão era prático, racional e frio. Caracterizava por uma indiferença assombrosa em relação ás pessoas e situações. Depois de poucos minutos ele assumiu meu lugar e em meia hora resolveu tudo. O cara era bom. Nunca perguntava nada, não me recriminava como todo mundo... era o irmão perfeito. Não sei como éramos gêmeos.

Estava, portanto, livre para seguir o meu dia. Havia nas ultimas semanas tomado algumas decisões. Uma delas era que precisava dar um jeito na minha vida. Não podia continuar morando naquele apartamento imundo e desorganizado, vivendo daquele emprego idiota onde era mal remunerado e brigando todos os dias com a ex mulher enquanto minha filha apresentava sinais de transtornos mentais. Aquilo não era vida. Ou eu me matava ou mudava as coisas.

Não tinha muitas saídas. Por isso optei por um pacto diabólico. Não destes que se vende a alma. Essa coisa de alma não existisse. Havia descoberto na internet uma rede de ajuda mutua onde as pessoas trocavam de vida. Você sumia e ia viver em outro lugar e com outra identidade. Até mesmo ganhava amigos e parentes novos para facilitar as coisas. A única condição era que um dia você teria que fazer alguma coisa para alguém da rede. Não dava para saber de antemão o que seria e nem quando iria acontecer.

Foi assim que virei outra pessoa. Mesmo continuando a ter o mesmo temperamento difícil, agora convivia com gente que não me criava problemas. Até mesmo gostava do meu novo emprego de joão faz nada em uma fabrica de bolos de luxo. Todos sorriam para mim e acatavam meus caprichos. Vivi feliz por mais de um ano com aquela vida onde nada acontecia mas a rotina era agradável e não me colocava diante de situações imprevisíveis. Todos os dias eram iguais. Não tinha nada para me preocupar.

Quanto a minha vida passada, nem mesmo lembrava dela. Não me importava muito com a minha filha e com a minha ex- mulher e pouco me interessava ter alguma noticia. Iriam se sair melhor sem mim. Disso tinha certeza. Agora tudo que importava era desfrutar dos meus dias felizes sem grandes preocupações e sem lamentar quem eu era.

Mas em um dia qualquer de janeiro fui procurado por um cara magro de pele branca como a neve e trajando um terno preto. Ele sentou de repente na minha mesa enquanto eu almoçava. Antes que pudesse dizer qualquer coisa foi logo se identificando. Era representante da sociedade com a qual havia feito o pacto diabólico. Era hora de cumprir minha parte no prometido.

Pelo menos era uma coisa simples e que não me daria trabalho. Segundo ele, tudo que eu teria que fazer era entregar uma bolsa a uma pessoa que estaria hospedada em um hotel no centro da cidade. No mesmo dia me propus a executar a tarefa. Fui anunciado na portaria do hotel e subi para me encontrar com meu interlocutor no apartamento 609 identificado apenas pelo codinome de sr. Corcunda.

Ele me abriu a porta e me fez entrar sem cerimônia murmurando um “boa noite” enquanto fechava a porta atrás de mim. Era um velho bem estranho. Me ofereceu um café, mas preferi não aceitar. Só queria acabar logo com aquilo. Apresentei a pasta ao sujeito. Mas ao aceita-la ele me ofereceu outra idêntica. Segundo o velho foi o que lhe disseram para fazer. Assim, sai do local com uma pasta idêntica a que fui levar. Fui orientado a abri-la apenas depois de chegar em casa. Assim procedi.

A pasta continha alguns encadernação e fotos. Era um dossiê completo sobre tudo que havia acontecido nos últimos tempos com minha antiga família. Continha também algumas informações sobre mim . Mais especificamente sobre minha personalidade e perfil psicológico. As informações ali contidas iam de encontro a tudo que eu sabia sobre minha vida e, por mais irritante e desconcertante que seja, não podia deixar de reconhecer algo de verdadeiro naquele relato que me definia como uma pessoa que sofria de transtornos mentais.

Fiquei pensando sobre o objetivo daquilo sem chegar a conclusão alguma. Afinal, vivia agora uma vida nova. O passado não me importava. Mas confesso que fiquei perturbado com aquilo. O que era minha vida afinal? Talvez tudo fosse diverso do que eu entendia de mim mesmo e de como percebia todas as coisas que me aconteciam.

Era o tipo de coisa a ser resolvida pelo meu irmão gêmeo. Mas segundo aquela documentação toda, ele não existia. Nada daquilo que eu estava vivendo era realmente real.

A melhor coisa de ser jovem é dispor de abundante tempo livre, o que permite o exercício de diversas atividades simultâneas. Quando se vive unicamente para estudar, podemos brincar com o tempo. Eu, por exemplo, ajudava nas tarefas domesticas, via TV, lia, andava de bicicleta, etc. Meu cotidiano, nestas pequenas coisas, era mais dinâmico do que aquele que define a vida adulta e a rotina de quem trabalha para ganhar o próprio sustento.

Uma das coisas engraçadas de se lembrar o passado é que não era apenas o fato de sermos mais jovens , as configurações culturais da década, que faziam com que as coisas fossem diferentes. Os ritmos de nossa existência, nossa pré disposição para a microfísica dos fatos vividos também era diferente. Não é apenas uma questão de envelhecer. Nossa própria maneira de sentir se altera através dos anos.

II

Agora eu estava nessa situação sem entender absolutamente nada do que acontecia. A vida que havia abandonado já não era mais exatamente aquela vida horrível que eu pensava. Muita coisa a minha volta me escapava. O pior de tudo era o que as pessoas pensavam sobre mim... definitivamente, não dá para confiar em outro ser humano. O fato é que eu tinha uma avaliação muito rasa sobre tudo o que me acontecia.

Quanto ao pacto diabólico, ele havia me dado outra vida para fugir da primeira e agora me induzia a duvidar das duas. Não entendia realmente porra nenhuma do que estava acontecendo. Nem mesmo queria entender alguma coisa. Não valia a pena. Tudo que importava era continuar respirando.

Afinal quem eu era? Tudo havia começado faz muitos anos e a verdade é que eu já havia mudado de vida incontáveis vezes. Eu não era ninguém e, justo por isso, havia sido muitos. Nenhuma versão de mim, entretanto, conseguiu dar certo, adaptar-se plenamente a própria mentira.

Os pactos diabólicos eram uma estratégia antiga, como revelava o dossiê contido na pasta. Minha existência era um jogo entre lucidez e loucura onde eu buscava a fantasia ideal. Difícil dizer qualquer coisa sobre mim que não redundasse em incerta. Não tinha passado, presente ou futuro. Tudo era inventado e reinventado constantemente. Eu era meu próprio irmão gêmeo... mas quantos mais eu seria?

Havia chegado o momento de superar tudo isso, tornar a ilusão transparente. Talvez por isso tenham revelado toda a trama. A fantasia devia não estar funcionando. Instintivamente eu sabia que precisava fugir de tudo. Que aquilo era um sinal de que as coisas não estavam indo bem. Sabe-se lá... poderiam estar pensando em me eliminar como caso perdido.

Pensando assim, peguei um carro e decidi dirigir até o fim do mundo. Não tinha um plano. Mas talvez o fim do mundo fosse aquela pequena cidade em que nasci. Era lá que tudo deveria terminar. Lá onde começou...

Depois de algumas poucas horas na estrada cheguei aquele pequeno centro urbano onde cresci e deveria me parecer familiar. Mas eu não conseguia reconhecer qualquer vestígio de passado em qualquer parte. Nem mesmo sabia o que encontrar. Família, amigos? Não tinha lembranças precisas do meu passado. Mas sabia que era naquela pacata e insignificante cidade onde havia nascido. Todos precisam de uma origem. E era isso que eu estava buscando: meu ponto de partida.

De repente o telefone tocou. A voz masculina e cadavérica do outro lado da linha se identificava como representante do pacto diabólico. Me repreendia por ter pego a estrada e me ordenava a voltar. Respondi com um palavrão e desliguei o telefone. Mas era obvio o sentido daquilo. Talvez eu estivesse equivocado quanto a minha origem. Pode ser que nada que eu soubesse sobre mim fosse confiável.

Quando me dei conta estava estacionado em frente ao cemitério da cidade. Desci do carro e , como se soubesse o que estava fazendo, caminhei até uma determinada sepultura. O nome esculpido na lapide não era o meu, mas a foto que o decorava era minha. Então me dei conta daquilo que sabia o tempo todo, mesmo sem ter consciência disso: eu estava morto. Nada daquilo estava acontecendo. Eu não existia. Não havia qualquer realidade ou solução.