Acúcar ou adoçante?

- Açúcar ou adoçante?

-Açúcar, por favor. Bastante açúcar.

Depois de jogar cinco colheres de açúcar em um café qualquer, a garçonete se virou e voltou para atender outros pedidos. Sem nem ao menos perguntar se a quantidade de açúcar fora ideal. O homem olhou para o café. Sorriu. Sabia que aquela mesma garçonete gorda que o servia sem vontade todos os dias, jamais errara na quantidade. Não que fosse a intenção dela, mas automaticamente ela já sabia o que fazer. Quando o homem de casaco e chapéu preto entra na loja e senta-se na mesa solitária em frente ao espelho, ele quer um café com bastante açúcar.

Já havia reparado que, embora muito polido e bem arrumado, aquele rapaz era jovem. E bonito. Todos os dias no final do tarde ele aparecia por ali e pedia um café com bastante açúcar. Claro que ela não comentava com ninguém, mas depois que o servia, ela ficava, discretamente, observando-o de longe. Ele nunca pedia mais nada. Apenas ficava ali, aproveitando o seu café doce. Depois, jogava a moeda para cima e apanhava-a com ar de suspense. Cara ou coroa? Independentemente do resultado, ele tirava mais uma nota do bolso que, somada ao valor da moeda, pagava o seu café. E muito educadamente se levantava e ia embora. Sempre que passava pela garçonete que o servia (e sempre passava), levantava o chapéu e dizia “Boa tarde!”.

Pois bem, hoje ainda estava na parte da discreta observação. Estava totalmente imersa em seus devaneios quando se deu conta de que o rapaz estava com a mão estendida no ar, fitando-a. Parou de respirar. Não podia ser! Há exatos dois anos aquele homem vinha tomar café ali, e há exatos dois anos ele jamais havia requisitado qualquer coisa além do seu café açucarado! Ficou nervosa, tensa. Aquele era um fato inédito. E coisas inéditas nem sempre eram boas. Respirou fundo, encheu o peito de coragem e foi até lá. Chegando à mesa, reparou em um papel meio amassado na mão do moço. Mas não podia ficar se atentando a isso, tinha que fazer a aparente parte dela nesta sociedade. Trabalhar.

-Pois não?

-Você já reparou em como nos acostumamos com a realidade?

-Como?

-Que não reparamos mais nas coisas comuns do dia-a-dia... Justamente porque é dia-a-dia!

-O senhor está passando bem?

-Por exemplo, você sabe a quanto tempo eu freqüento este lugar?

Claro que ela sabia que eram exatos dois anos.

-Não senhor.

-Não tem nem uma breve noção?

-Talvez um ano?

-Mais.

-Dois?

-Exatamente! Faça-me uma pergunta.

-Como assim?

-Não, faça outra! Uma mais pessoal!

Aquela era a situação mais esquisita que ela já havia presenciado. Ora, estava ela trabalhando quando, de repente, um velho cliente a chama. Um cliente que ela sempre achara interessante. Pensando que ele quisesse um outro café, ou um sanduíche, ela foi atendê-lo. Mas não, nada de café ou de lanche. Ele estava conversando. Conversando! E queria que ela lhe fizesse uma pergunta. O nervosismo ainda era intenso. O que perguntar? Qualquer coisa serviria. A primeira coisa que lhe viesse a cabeça, ela diria.

-O que tem aí nesse papel? – Disse, apontando o papel amassado.

-Um conto.

Ele ficou olhando-a. Não demonstrava nenhum indício de que diria alguma coisa. Ora, queria ele mais perguntas? Meio perdida, achou melhor prosseguir com as perguntas:

-Qual o nome dele?

-“Açúcar ou adoçante?”.

Aquilo era, sem dúvidas, o mais estranho da situação. O nome do conto era exatamente a pergunta que ela lhe fazia todos os dias.

- Por quê?

- Porque a opção é duvidosa. A escolha é decisiva.

-Ah, então é um conto sobre saúde?

-Não.

-Então qual o tema do conto? Café?

-Também não. Olha não me leve a mal, mas acho que se eu te explicasse você não entenderia.

-O senhor está me chamando de burra?

-Não necessariamente. Ser burro é diferente de ser desatento.

-Ah, então agora eu sou desatenta!

-Sem ofensas, mas você reparou quanto tempo eu fiquei com a mão estendida, para que você viesse me atender?

Ai! Se ele soubesse que a desatenção dela era por causa dele próprio! O seu rosto corou levemente.

-Não senhor. – Disse envergonhada.

-Bom, mas a questão não é essa, não é verdade?

-Se o senhor está dizendo...

-É bastante simples. – Analisava ele, meio que distraído.

-O quê?

-O conto.

-E porque eu não entenderia?

-Porque você faz parte dele.

Esse cara era maluco. Não é possível! Que conversa de doido! Como ela faria parte de um conto que ela nem sabia que existia?

-Eu sou uma personagem?

-A principal.

-Se eu não tenho condições de entender o conto, como sou a principal?

-Devido a essa sua condição, você é o foco principal do conto.

-O senhor está realmente passando bem?

-Eu te diria que sim, mesmo que não estivesse.

-Por quê?

-Pelo mesmo motivo que você põe cinco colheres de açúcar no meu café todos os dias.

-Eu faço isso porque é o meu trabalho.

-Eu nunca te disse que gostaria de exatas cinco colheres de açúcar.

-E também nunca reclamou.

-Isso quer dizer que estou satisfeito?

-Claro que sim!

-Se eu reclamasse você mudaria a quantidade?

-Lógico.

-Se não fosse uma relação comercial, e sim uma relação de amizade, você mudaria?

-Sim! Quer dizer, depende.

-Depende do quê?

-Aí o senhor iria depender da minha vontade.

-Por isso você é a personagem principal. Posso te fazer uma pergunta pessoal?

-Sinta-se a vontade.

-Você tem vontade de colocar as cinco colheres de açúcar?

Ele fitava-a com um olhar investigador. Essa era a pergunta que ele estava esperando para fazer. Essa era a pergunta que sua mente não esquecia. Tivera que escrever um conto inteiro, só para fazer aquela pergunta!

-Tenho!

-Se não tivesse, sua resposta seria essa do mesmo jeito. Entretanto, você ainda não me agradeceu.

-Agradecer pelo quê?

-Eu te fiz personagem principal.

-Quanta prolixidade!

-Por isso você é a personagem principal.

-Deseja mais alguma coisa?

Pegou uma moeda no bolso e jogou para cima. Que lado ganhara, só ele sabia. Puxou mais uma nota qualquer e a deixou junto com a moeda na mesa. Levantou-se, cumprimentou a moça levantando o chapéu e disse “Boa tarde!”. Foi-se embora.

Passaram-se duas semanas, sem que o rapaz fosse ao café. A garçonete gorda ansiava pela sua volta. Sentia saudades. Já estava pensando que ele nunca mais voltaria! Mas aí, milagrosamente, a porta se abriu e ele sentou-se em sua mesa solitária. Pediu um café.

-Açúcar ou adoçante?

-Adoçante.

A moça pôs cinco colheres de açúcar no café e voltou para atender outros clientes. O rapaz olhou o café com um brilho nos olhos. É por isso que ela era sua personagem principal. Não pôde conter um discreto sorriso.

João Guilherme Magalhães Monteiro de Almeida
Enviado por João Guilherme Magalhães Monteiro de Almeida em 01/08/2007
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