QUASE HOMICIDA

Sexta-feira, tinha acabado de chegar do trabalho, numa semana que consumira todas as suas energias, quase fora demitido dormindo no expediente. Abriu a porta e de cara deparou-se com ela, lançou-lhe um gélido olhar, afinal tinha sido ela a culpada por todas aquelas noites dormindo fora de hora motivo de sua infelicidade no lar e no serviço. Seus olhos estavam mais fundos e escuros que a água do lago que fazia parte da paisagem, o qual sua ótica observara em caminho para casa. Não sabia como foi possível conviver todos aqueles anos com uma máquina de manipulação, abriu a boca num longo bocejo, seus olhos encheram-se de lágrimas não só por compressão das pálpebras, mas por uma sensação de tempo perdido. O mundo gritava e exigia sua presença nele.

Ela tinha conseguido transforma-lo num zumbi, um parasita, sobrevivendo das migalhas que caia da mesa fornecidas propositadamente, uma espécie de ração diária da qual ele necessitava, uma droga que seu corpo exigia corroendo-se numa autofagia, fagocitando a seiva bruta da vida e toda forma de pensamento individual que viesse possivelmente existir em sua mente, uma drenagem das ondas cerebrais afetando não só seu pensamento como também seu comportamento tornando-o um ser anti-social. Teve vontade de empurra-la pela janela, não lhe importava se seria do décimo andar, só queria livrar-se daquela coisa repugnante que tomara todo o seu tempo útil, ou que podia ter sido útil, mas ele tinha que reconhecer que ela trouxe muitas vezes alegria, distração e informação principalmente nas horas vagas. O que o fez mudar de idéia foi os gritos que as pessoas dariam, a multidão querendo saber de onde ela caíra, talvez chegassem até ele como culpado por tal ato.

Resolveu enfim mudar de atitude, e o que o fizera libertar da escravidão a qual ele era subjugado foi um dia ter se cansado de viver sob altas doses de suas cenas, suas programações que eram minuciosamente preparadas para convence-lo, ao chegar em casa, a paranóia de que ele era bom o suficiente e precisava ter, ter, ter... Conseguira enfim, ampliar sua visão além dela, após as fronteiras do até então conhecido por ele, passando a não ver mais o mundo como um inimigo através de um aquário e sim como uma possibilidade. Desde então ele respirava e vivia, pois tinha desligado a sua TV.