SONHO II - LIA DE SÁ LEITAO - NORMANDA - 3/08/2007

O ambiente de trabalho tornou a sua vida uma sociedade privada, ali, criou o universo que lhes cabia de ilusão e desilusão, amor e ódio, por que não dizer aquelas paredes o protegia como refém de seus desamparos, aquelas portas fechavam o mundo lá fora para o seu âmago tão desprovido de domínio das suas emoções, ali, entre as rondas e o ambulatório estava o motivo da procura de dirimir a angústia produzida pela intuição que sustenta o sentimento de abandono e desejo, a vantagem de ser destacado profissionalmente e a exposição das angústias.

Guerra e paz!

A ação desprendida do cotidiano apresenta a delicadeza da alma, escondendo as fantasias, as taras, parte da fantasia sensual pouco vivenciada quando jovem.

Desastre ou salvação momentânea do que partilhava na vida comum de um lar em aparente harmonia, sem falas de repúdio, sem angústias expostas, sem feridas abertas, morriam-se cada minuto sempre atrelado ao sonho de alguém que exigia a presença do tempo, senhor de todas as horas, o velho relógio guardião da sala de jantar dominador, impunha com o olhar de ciclope as regras do poder exercido pelas regras sociais.

Imperdoável atraso entortava os ponteiros lustrosos de ouro 24 quilates contrastando com o madeiro em ébano, talhado pelas mãos firmes de um artesão linear, cartesiano como a própria forma de pensar daqueles que pautavam a felicidade do dia pela quantidade de pessoas à mesa e a qualidade do que era servido nas refeições.

Aquela máquina atormentava o ser, deprimia e oprimia em seu poder qualquer pensamento livre do Sol ou da Lua, delegava-se a atribuição da dependência dos sonhos e da danação da alma, algumas vezes clamava-se liberdade, e sem arestas deixava-se levar em fugas nunca antes experimentadas.

Barulho das horas!

Quem não pecava ao sabor da inconsistente mentira e da folga das engrenagens favorecidas pelos minutos vivenciava a realidade colorida pela música dos bares noturnos, risadas, desacertos, amor, acasos, beijos loucos, furtivas paixões, entregas nunca elucidadas, e do nada ouvia-se um bêbado feliz, salve o Abscinto! A bebida dos poetas, sempre escondida entre as bolsas chiques das mulheres impolutas do Maison ou discretamente mergulhada em um recipiente de gelo servido com o Cabernet Assemblage, os dedos nunca abandonavam as suas taças, as mãos livres jamais deixavam o gesto obsceno à mercê de uma crítica ferrenha das madames e seus respectivos doutores da mesa ao lado, uma mesa era só devaneios loucuras, risadagens, piadas, poemas sem gato, histórias sem chafarizes, aquela que censurava os arroubos dos adolescentes da terceira idade não permitia sorrisos ou olhares cínicos ou mãos sutis que acariciavam o joelho mais próximo.

Na surdina da fuga todos ditavam moda na Velha Cidade, e se riam, cineastas, escritores, bandidos, traficantes, donos de bares, os senhores das arte, a mulher da cultura, brindavam-se no silêncio das horas o abscinto, a amputação da vontade do ser em detrimento a elevação da alma em poder do pré texto, do verso, evocava-se Arthur Rimbaud.

As regras ultrapassavam os limites da razão, a amputação do ciclo temporal era vencido pelo amor feroz das inspirações arqueadas pelos anjos.

Estando só em sua redoma de trabalho jamais entendeu porquê o relógio esculpido em ébano foi despedaçado em um simples golpe de vassoura.