nau

nau*

Madrugava, ouviram a primeira lamúria do navio se direcionando ao canal, e quase nada mais se distinguia. É verdade que, à maneira de cada um, ambos aguardavam aquele apito. Ele se apressou, depois lavou as mãos e a cara olhando-a em seu outro,

- é hoje [disse-se]

em seguida abriu a porta e do jeito que a faca, enviesada, entre o jeans e a pele de suas costas, entrou, também ele o fez no cheiro de peixe que ainda neblinava a hora.

Os olhos amanhecidos que fundeiam os butecos e puteiros daquelas ruelas, os quais ele já estivera, puderam vê-lo estancar os passos calmapressados, a mão proteger da brisa o cigarro ao acender, e logo certificar que a faca abainhada na cintura, às costas, não havia sido esquecida em casa, e prosseguir.

A mesma palavra se aproximava até atracar, como nas mesmas datas dos anos anteriores, indecifrável no casco. E era assim que ele reconhecia. Vê-o. Fundido ao parapeito do convés o homem procura, varre as sarjetas com a visão, bêbados e putas saem às calçadas desdenhando-o [um mija no degrau duma porta, duas cambaleiam abraçadas com um entre elas, um curioso fuma encostado na esquina admirando a embarcação, e há outros...], e o homem tenta divisá-la nos transeuntes, mas sabe que não a confundiria, e ela se faria ser vista.

Uma hora se passa. O sol já reflete na água e o imóvel homem transpira, talvez mais por nervosismo, seus dedos batem impacientes na borda metálica, havia esperado um ano, novamente, por aquele dia, por aquele momento anual, mas agora suas retinas tentavam adentrar quanto mais possível nas janelas e portas de cada um daqueles estabelecimentos, os quais já estivera, atêm-se novamente nos rostos e corpos individuais [o que mijava está deitado, dois cambaleiam abraçados com uma entre eles, o curioso continua fumando encostado na esquina admirando a embarcação, e há outros...], mas sabe que não a confundiria, e ela não retornaria àquelas casas.

Ele, observa-o. Imagina sem sucesso e sem saber, o pensamento confuso, as questões, as dúvidas saxônicas que se passam na cabeça ao sol daquele homem. O prazer ao ver sua cara ali, à deriva, não é o que ele pensou sentir. De repente aquele pequeno caos se agita com a passagem próxima do ruído de uma viatura, ele instintivamente confere pelo tato a presença da faca, o homem no seu alto percebe que alguns se refugiam e também está sem sair do lugar caminhando sobre os próprios pés.

O ruído passou e encaminhou-se ao seu destino, que não era ali, mas o homem, em um detalhe de instante, nota que o curioso que fuma encostado na esquina não se abala, continua admirando a embarcação, ou, mais precisamente, olha-o, e leva a mão na cintura, às costas. Não gosta da sensação, fica nervoso, mais do que já estava. Um ano, novamente, ela nunca se atrasou, nunca se atrasaria para o encontro de tantos anos. Ele caminha em sua direção, a mão às costas, o homem sente acelerar o coração, ele tira da cintura a faca suja e mostra-a explicitamente ao homem, como quem usa uma linguagem autóctone para dizer algo, que pelo horror no rosto, o homem entendeu; deu uma olhada tremula em toda área do porto e virou-se ao interior da embarcação – nunca mais veria aquelas paragens. Ele continuou. Também não tinha mais para onde nem para quem voltar.

*conto publicado pela revista de criação literária Alagunas (http://www.alagunas.com/), edição #10: Moinho

Henrique Pitt
Enviado por Henrique Pitt em 18/05/2017
Código do texto: T6002386
Classificação de conteúdo: seguro